Título: Ação correta, bravata inútil
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2007, Notas e Informações, p. A3

O governo brasileiro agiu sob a proteção de um acordo internacional quando licenciou compulsoriamente duas patentes do Efavirenz, um medicamento usado no tratamento da aids. Com essa medida, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu caminho tanto para a importação de um genérico produzido por laboratórios indianos quanto para a fabricação do remédio no Brasil. O laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme, dono das patentes, lamentou a decisão e acusou as autoridades brasileiras de haverem rompido as conversações prematuramente.

O coro das censuras teve a participação da Câmara Americana de Comércio de São Paulo, da Federação Internacional da Indústria Farmacêutica, com sede em Genebra, e também das entidades do setor no Brasil. Foi uma iniciativa perigosa para o Brasil e para outros países em desenvolvimento, disseram porta-vozes das várias associações de representação da indústria.

Reações desse tipo e pressões contra a alegada quebra de patentes eram previsíveis e o governo deve tê-las incluído em seus cálculos.

Será difícil contestar com sucesso, num tribunal ou na Organização Mundial do Comércio (OMC), a ação das autoridades brasileiras. O licenciamento compulsório de patentes é previsto em normas internacionais desde janeiro de 1995, quando entrou em vigor o atual acordo sobre propriedade intelectual. O assunto foi retomado em dezembro de 2001, na conferência ministerial da OMC em Doha, no Catar, e a definição das condições para licenciamento foram completadas em agosto de 2003.

Pelas normas em vigor, esse procedimento é permitido tanto para produção destinada ao mercado interno quanto para exportação, quando o país importador não tem condições, pelo menos momentâneas, de fabricar o medicamento. Emergências nacionais, ¿outras circunstâncias de extrema urgência¿, ¿uso público não comercial¿ e práticas anticompetitivas são motivos previstos para a adoção da medida.

O licenciamento compulsório não corresponde a uma quebra de patente. Esse esclarecimento é fornecido pela própria Organização Mundial do Comércio em seu material didático acessível pela internet. O detentor da patente mantém seus direitos e recebe um pagamento pela produção de cópias.

Essa remuneração está prevista no Decreto nº 6.107, assinado na sexta-feira pelo presidente Lula: o valor corresponderá a 1,5% do custo do medicamento fabricado pelo Ministério da Saúde ou do preço do produto por ele comprado. As autoridades brasileiras cuidaram de preparar um decreto de acordo com todas as minúcias legais e parecem ter sido bem-sucedidas nesse esforço.

Mas a decisão, obviamente, não é apenas técnica e jurídica. É também política, porque envolve o risco de atritos internacionais e porque pode afetar decisões de investimento. Em 2001 e em 2003, o governo brasileiro ameaçou recorrer ao licenciamento compulsório, mas não precisou fazê-lo porque os proprietários das patentes concederam descontos considerados satisfatórios pelas autoridades. Desta vez, segundo o governo, não foi possível evitar a medida extrema porque as negociações, iniciadas em novembro, não produziram resultado até o final de abril. No dia 24 do mês passado, uma portaria classificou o medicamento como ¿de interesse público¿. A empresa ainda ofereceu, depois disso, um desconto de 30%, considerado insuficiente pelo governo brasileiro porque o preço ainda seria quase o dobro daquele pago pela Tailândia.

Com a importação do produto, e talvez com sua fabricação, mais tarde, o governo poderá economizar US$ 30 milhões anuais, segundo alega, e ampliar a assistência aos doentes.

A iniciativa é defensável tanto por sua base legal quanto por seus objetivos, mas pelo menos um reparo é indispensável: o presidente Lula poderia ter renunciado ao discurso em tom de bravata e à ameaça de recorrer ao licenciamento para baratear outros produtos. Ele não precisa copiar o estilo dos companheiros Evo Morales e Hugo Chávez ao anunciar uma providência dura, mas política e legalmente justificável.

O decreto por ele assinado mostra a disposição de fazer coisas desagradáveis, mas necessárias. A bravata acrescenta ao ato uma tintura de truculência não só inútil, mas também inoportuna.