Título: A vitória de Sarkozy
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2007, Notas e Informações, p. A3

Os 38 milhões de eleitores que foram às urnas no domingo dividiram a França em duas - uma de esquerda, outra de direita. Não está claro, porém, que Nicolas Sarkozy, o novo presidente direitista eleito por 53% dos votos válidos, ante os 47% da socialista Ségolène Royal, tenha recebido um inequívoco mandato para ser uma Margaret Thatcher de terno e gravata, como se propagou. ¿O povo francês escolheu a mudança¿, proclamou Sarkozy assim que foram conhecidos os resultados. ¿E eu implementarei essas mudanças. Porque esse é o mandato que recebi e porque a França precisa de mudanças.¿ Mas ainda é muito cedo para se saber como Sarkozy - o único candidato desde 1974 a alcançar o Palácio do Eliseu na primeira tentativa - conciliará, na prática, suas idéias conservadoras no plano social com suas idéias liberais no plano econômico. Afinal, sua campanha foi baseada numa única mensagem: a mudança - mas não muita, para não espantar os eleitores.

Nicolas Sarkozy terá seis anos para implementar a sua agenda para a economia em paralelo à agenda social. Esta foi o forte de sua campanha e predominou sobre o ideário econômico no seu discurso de vitória, pontuado pela reiteração dos valores do trabalho, da autoridade, da moral, do mérito, do respeito e da identidade nacional (eufemismo para controle da imigração). Em suma, o paradigma conservador clássico que, no entanto, precisa ser qualificado. Pois o que caracterizou a campanha de Sarkozy foi a rejeição à passividade e ao negativismo, que têm dominado a vida francesa nas últimas décadas, e o chamado à ação e à transparência. Além disso, nenhum outro presidente francês acreditou, como Sarkozy, nos atributos do moderno capitalismo.

Essa convicção é inseparável das origens, formação e trajetória de Sarkozy, uma figura decididamente singular na história dos chefes de Estado de seu país. Nesse sentido, guardadas as proporções, ele está para a nata da política francesa como esteve para o establishment britânico a filha de quitandeiros que chegou a primeira-ministra e entrou para a história como a Dama de Ferro da revolução neoliberal. Filho de uma família de imigrantes que, por isso mesmo, nunca integrou a elite francesa das armas ou dos brasões, nem mesmo a aristocracia mais porosa do capital, Sarkozy tampouco se criou nessa exclusiva incubadeira da classe dirigente gaulesa que é a Escola Nacional de Administração - diferentemente, aliás, da socialista Ségolène Royal. Outro fator ainda - a idade - ajudou a dotá-lo de uma visão despreconcebida da nova economia globalizada.

Tendo nascido 10 anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, cresceu na política livre do antiamericanismo acendrado e da crença messiânica na grandeur francesa, características marcantes da mais poderosa ideologia do país na segunda metade do século 20, legada pelo general De Gaulle. Embora se considere francês jusqu'au bout - e tenha sido militante gaullista na juventude -, Sarkozy não compartilha da mitologia que se criou em torno do singular modelo gaulês, em que o Estado, impermeável às grandes transformações por que vem passando o capitalismo, dá as cartas como em nenhuma outra economia de mercado. A sua mentalidade, crítica do estatismo e adepta da primazia do mérito individual, é a que o jornalista Jean-Jacques Servain-Schreiber desejava que tivessem os seus compatriotas para enfrentar o ¿desafio americano¿, título do seu livro de 1967.

Não pode haver dúvida, portanto, do que pensa Sarkozy sobre a economia aberta - menos no agrocomércio, em relação ao qual ele não é menos protecionista do que Ségolène Royal ou o vândalo José Bové, com quem ela se fez fotografar dias atrás. Pode-se perguntar, no entanto, se o novo presidente terá condições de iniciar uma reforma profunda do modelo francês - ou seja, se uma sociedade excessivamente acomodada aceitará mudanças que alterarão seu modo de vida. Uma semana antes da votação, Sar-kozy exortou a sociedade a se livrar da ¿herança imoral¿ de Maio de 1968 - a legitimidade da violência, a demonização da polícia, a prevalência dos direitos sobre os deveres nos programas sociais. Pelo menos nas urnas, contra isso e a favor das prometidas políticas restritivas à imigração, falou alto a maioria da população francesa.