Título: Cotistas dizem que não vivem segregação
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2007, Nacional, p. A15

Ex- açougueiro de supermercado, Eduardo Souza Ferreira, de 30 anos, mora em Marechal Hermes, na zona oeste da capital, e pega trem para chegar à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde cursa licenciatura em artes. Ingressou em 2003, primeiro ano do sistema de reserva de vagas na instituição, depois de passar pelo ensino público - Escola Técnica Visconde de Mauá, também em Marechal - e por um pré-vestibular comunitário, mantido pelo Sindicato dos Servidores da UERJ. Foi aprovado como cotista sem saber - não conhecia o sistema e foi surpreendido - e admite que o ritmo que enfrentou na escola foi 'puxado'. Por isso, largou o trabalho um ano depois de começar o curso. Afirma jamais ter sido discriminado na universidade - um perigo apontado pelos adversários do sistema.

'Nunca ninguém comentou nada aqui', conta. 'Fui ouvir opinião contrária quando estava fazendo a monitoria no Sesc de Madureira. Alunos brancos vinham conversar e criticavam.' Atualmente, Ferreira vive de bicos: o estágio no Centro de Tecnologia Educacional, iniciado em outubro de 2004, acabou em setembro de 2006. Ele elogia a colaboração dos professores. 'Muitos fazem o máximo, quando passam trabalhos, para evitar que tenhamos muitas despesas', explica.

Luana Mendes, de 21 anos, estudante de pedagogia que mora em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, diz nunca ter sido discriminada na universidade por ser cotista. 'A maioria da minha turma é de cotas', afirma. Reconhece, porém, ter ouvido piadas a respeito de sua condição fora da instituição. 'Sempre tem alguém que fala: 'você é da cota, é menos difícil'', diz. Sua história também é um inventário de dificuldades e esforços: estudou no Ciep Nação Mangueirense, na Mangueira, num curso preparatório para emprego e, de lá, conseguiu ir para um pré-vestibular pago pela Xerox. Gasta R$ 360 por mês só em passagens, pagas pelo pai. Ganha um salário mínimo como estagiária.

Não se queixa dos problemas nem da distância - chegou a tentar vestibular para psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara. 'Você tem de ir até onde você quer, não até onde está mais próximo', filosofa.

Luana admite, contudo, que teve problemas no início. 'Minha maior dificuldade foi acompanhar o ritmo', revela. 'Vim de escola pública, não tinha base em algumas questões, principalmente na parte filosófica, em sociologia. Nas aulas de filosofia da educação, o professor já chegava falando de Marx.'

MUDANÇAS

Para coordenadores do Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, a universidade também mudou com o ingresso de estudantes pobres e afrodescendentes. 'O impacto visual é fortíssimo', diz Renato Ferreira, professor e advogado negro, especialista em ações afirmativas. 'Não tem como não se assustar com isso, não se via. No direito sobretudo. Tinha um padrão zona sul do Rio de Janeiro.'

Seu colega Pablo Gentili afirma que, com os cotistas, a UERJ está atualmente num patamar de conhecimento muito diferente do passado. Ele não vê maiores problemas no desempenho escolar dos cotistas, embora não apresente dados a respeito. 'Não sei se as cotas têm poder democratizador tão extraordinário, se isoladas de outras políticas públicas.'

A UERJ foi uma das primeiras universidades brasileiras a adotar o sistema de reserva de vagas. Hoje, calcula Gentili, perto de 40% dos estudantes da graduação são cotistas - 20% de cada curso é formado por afrodescendentes, 20% por egressos de escolas públicas e 5% por portadores de deficiências e indígenas. Há também o limite de renda familiar per capita do cotista, que não pode ser superior a pouco mais de R$ 500. E o vestibular tem uma nota de corte (4) na fase eliminatória, que vale para todos os concorrentes - a reserva só funciona no turno seguinte, classificatório. O vestibular da UERJ é considerado um dos mais difíceis do Rio e muitos cursos são prestigiados. O de direito, por exemplo, é considerado um dos melhores do País.