Título: Lula negociou para não ser acusado de desestabilizar Evo
Autor: Marin, Denise Chrispim e Abreu, Beatriz
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2007, Economia, p. B10

Bem diferente do discurso oficial ao longo de toda a semana passada, não foi a Petrobrás que fechou a negociação da venda das duas refinarias da estatal brasileira na Bolívia, em Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra. A empresa, o Ministério de Minas e Energia e o Itamaraty forneceram assessoria técnica e diplomática, mas todas as decisões foram tomadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com uma preocupação política que superou as questões econômicas do negócio.

Dois ministros e uma alta fonte da assessoria do Planalto foram unânimes nos relatos feitos ao Estado, na quinta-feira e sexta-feira: eles disseram que, diante do previsível fracasso do modelo nacionalista estatizante boliviano, o presidente cuidou, o tempo todo, para que a venda das refinarias fosse feita de um jeito que 'não transformasse o governo Lula em bode expiatório'. Isto é, de um jeito que não permita que Evo Morales venha a acusar a Petrobrás e o 'imperialismo brasileiro' de terem contribuído para desestabilizá-lo.

Paralelamente à negociação, o presidente brasileiro e seus ministros martelaram na mídia um discurso que 'informava' que a venda das refinarias era um assunto a cargo, única e exclusivamente, da Petrobrás. Foi o jeito encontrado para esconder a negociação e a preocupação políticas e de mostrar aos acionistas que a empresa estava cuidando do negócio dos investidores públicos e privados.

DISCURSO EMPATADO

Diante dos números oferecidos pela Petrobrás ao Planalto, balizando a negociação entre uma perda ou um ganho total, Lula pôs em prática a tal solução que não transformaria o Brasil em 'bode expiatório' dos problemas do governo Evo.

Nas conversas mantidas com assessores e ministros durante as viagens a Santa Catarina e São Paulo, terça-feira e quarta-feira, o presidente estabeleceu que o valor a ser pedido pelas refinarias teria como parâmetro, mais uma vez, uma orientação não econômica: um preço que resultasse em um discurso político empatado.

Foi o que aconteceu. Na quinta-feira à noite, cercado das garantias de que a Bolívia não recuaria mais da proposta fechada, o Planalto deu a negociação por encerrada e o empate político declarado.

O governo Evo Morales tratou de fazer esquecer que tinha a intenção de não oferecer nada pelas refinarias ou, quando muito, 'algo em torno de US$ 60 milhões ou US$ 70 milhões' e apregoou na Bolívia que 'só pagou US$ 112 milhões' - o que seria um bom negócio.

O governo brasileiro anunciou ao público interno que 'conseguiu US$ 112 milhões', outro bom negócio, tendo em vista o cano anunciado por Evo na Isla Margarita (Venezuela), em abril. O Planalto também fez esquecer que o pedido, com base no investimento e no mercado de energia, ficaria perto de US$ 170 milhões.

No fim da negociação, o presidente lamentou a colaboradores que Evo não se dá conta das oportunidades que vem perdendo ao insistir no seu discurso interno nacionalista e ao tomar atitudes que afugentam o investimento estrangeiro. Para Lula, a Bolívia corre o risco de inviabilizar a sua capacidade de explorar e fornecer gás natural para a América do Sul e, portanto, a sua própria economia.

'O governo teme que qualquer ação mais contundente do governo boliviano possa desencadear o total desequilíbrio do país e até a deposição de Evo', afirmou uma fonte próxima ao presidente. 'Lula não quer nem pensar na hipótese de seu governo ser responsabilizado por essa crise', afirmou ao Estado.

NÃO CONVERSARAM

O presidente Lula não teve nenhum contato com o presidente boliviano, assegurou na sexta-feira o assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. Esse silêncio se mantém desde o atrito entre ambos, sobre a venda das refinarias, em conversa reservada em Isla Margarita, em 17 de abril. Segundo Garcia, o governo brasileiro está ciente de que a Bolívia passa por um complexo processo de transformação política, sob um alto risco de fracasso.

'No primeiro mandato do presidente Lula, estive 13 vezes na Bolívia e me encontrei com 4 presidentes diferentes', atestou Garcia. 'Tudo que contribua para a estabilidade da Bolívia será bom para a relação bilateral e o equilíbrio da América do Sul. É o que explica a nossa prudência e cuidado ao tratar com a Bolívia.'

Um Lula visivelmente preocupado e ansioso comandou as negociações, mesmo enquanto recebia, em São Paulo, o papa Bento XVI. Entretanto, manteve sangue frio para tentar imprimir ao acordo as feições de uma negociação comercial, como se não tivesse, pessoalmente, dirigido a operação. A crise havia começado na noite do dia 6, um domingo, quando o governo brasileiro foi surpreendido pela edição de um decreto que, na prática, expropriou o fluxo de caixa das refinarias.

Naquele momento, estava em curso uma negociação entre a Petrobrás e a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), na qual a companhia brasileira ainda pleiteava manter uma parcela de 20% dessas plantas e previa, como preço total, algo em torno de US$ 150 milhões.

A assessores que o acompanharam em suas passagens por Santa Catarina e por São Paulo, Lula deixou claro que queria uma 'solução razoável' para a crise. Reiterou ainda que não suportava mais 'as idas e vindas' do governo boliviano e aconselhou os negociadores a pedirem a palavra final da Bolívia 'por escrito', em 'papel assinado'.

No dia 7, Lula deu o aval à proposta da Petrobrás de se retirar completamente da atividade de refino de petróleo na Bolívia. No mesmo dia, orientou a companhia a aceitar a venda das refinarias por um preço em torno de US$ 110 milhões, mesmo ciente de que a companhia teria de responder aos seus acionistas - especialmente os estrangeiros - pelo prejuízo de cerca de US$ 60 milhões. O valor girava em torno do que La Paz indicara como 'aceitável' e daquele que a Petrobrás julgara como 'razoável'. Era o que se encaixava na operação política presidencial.

SEM NOTA OFICIAL

'Esse prejuízo é só uma gota d'água nas contas da Petrobrás. Não compensa brigar pelo valor mais justo com a Bolívia', afirmou Lula, segundo assessores. 'Não vamos criar mais confusão porque o Brasil quer US$ 10 milhões a mais e a Bolívia quer US$ 10 milhões a menos. Por que criar um novo problema político e fazer o papel de imperialista?'

Naquela noite, Lula aprovou o teor da nota oficial emitida pelo Itamaraty, na qual foi ressaltado o impacto negativo da decisão boliviana de editar o decreto sobre a cooperação bilateral. Lula, entretanto, ordenou que nenhuma área do governo tocasse nos acordos bilaterais fechados em fevereiro. Seu objetivo de alertar La Paz sobre os riscos para a relação bilateral já havia chegado ao destino. Não compensaria, advertiu ele, alimentar atrito na véspera da negociação, marcada para o dia 9.

Na tarde do dia 10, no avião que o trouxe de São Paulo para Brasília, o presidente recebeu um telefonema urgente do ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, que o informou sobre a resposta positiva do ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Carlos Villegas, para a venda das refinarias. Rondeau acrescentou que negociações técnicas continuariam, sob ameaça de recuo da Bolívia e clima de desconfiança, e o documento oficial seria entregue até as 20 horas (horário de Brasília).

'Quero o assunto resolvido até amanhã de manhã', determinou Lula, pouco confiante no cumprimento do prazo final. A resposta definitiva da Bolívia, posta no papel e assinada, chegou ao Palácio do Planalto pouco antes das 20 horas de quinta-feira, enquanto o presidente recebia, em seu gabinete, os cinco ministros filiados ao PMDB.

Presente à reunião, Rondeau recebeu a informação final e a repassou a Lula. Segundo assessores, sua expressão nervosa mudou imediatamente para a de alívio. Mais descontraído, o presidente afirmou a Rondeau que a Petrobrás poderia aceitar a proposta de pagamento em duas parcelas, a ser efetuada em fornecimento de gás, e fechar o negócio.

Lula ainda teve um cuidado final: não autorizar a divulgação de uma nota do Palácio do Planalto sobre a conclusão do acordo, fato que caracterizaria a condução política do processo. O presidente preferiu ordenar a Silas Rondeau que esmiuçasse o teor do acordo para a imprensa.