Título: Encha o copo, América Latina!
Autor: Canuto, Otaviano
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2007, Economia, p. B2

A América Latina está no quinto ano do que já é o seu período de expansão mais vigoroso desde os anos 70. A média regional de crescimento do PIB foi de 5,5% no ano passado, com um terço dos países exibindo taxas acima de 7%. Com algumas exceções, tal desempenho vem-se fazendo acompanhar por superávits fiscais primários e na conta corrente dos balanços de pagamentos, taxas de inflação mais baixas, dívidas públicas menores em relação aos PIBs, além de melhor composição dessas dívidas (prazos mais longos e denominação em moeda local).

Já se tornou lugar-comum dizer que esse período virtuoso tem resultado de uma combinação de ¿boa sorte¿ - conjuntura externa extremamente favorável em termos de liquidez, preços de produtos intensivos em recursos naturais, crescimento mundial, etc. - e ¿boas políticas¿ domésticas. Os pesos atribuídos aos dois conjuntos de fatores variam de país para país e de analista para analista.

Mas é fato que a opinião predominante é a de que a expansão em curso se diferencia das anteriores por exibir menor vulnerabilidade em relação a um futuro choque de ¿má sorte¿. A não ser que uma eventual borrasca externa tenha intensidade acima das mensuradas por barômetros comuns, pode até ser possível imaginar, em parte da região, um ¿descolamento¿ parcial em relação à conjuntura externa. Dado o colchão adquirido em termos de saldos comerciais, reservas, dívidas públicas menores e com menor descasamento cambial, a continuidade do atual ciclo expansivo poderia vir com a demanda doméstica substituindo o impulso positivo gerado pelo comércio exterior nos últimos anos. Aliás, o impacto da desaceleração norte-americana sobre a região desde o ano passado tem sido mais que compensado por outros fatores externos favoráveis e pela força da demanda doméstica em alguns países, como o Brasil.

O grande risco é o do ¿comportamento da cigarra¿: relaxar e aproveitar o clima favorável da primavera. É preciso não perder de vista que a região tem crescido abaixo de muitas outras e que as médias elevadas refletem também casos extraordinários e temporários, como os de economias atravessando períodos de recuperação pós-crise profunda (Argentina) e/ou às voltas com inflação em alta (Argentina e Venezuela), a qual, mais cedo ou mais tarde, implicará períodos de desempenho menos brilhante. Além, é claro, dos enormes desafios em termos de redução de pobreza e desigualdade de renda, sem a qual não haverá estabilidade política e macroeconômica duradoura.

Na raiz dos problemas está o fraco desempenho regional em termos de investimentos e elevação da produtividade. Esses estão melhores que no passado recente da própria região, mas distantes daqueles de outras áreas em desenvolvimento. Para se ter uma idéia, observe-se que, de 1990 a 2006, a produtividade total dos fatores de produção - a eficiência com a qual são empregados a mão-de-obra e o capital físico - aumentou, em média, na América Latina ao ritmo de 0,8% ao ano, um ponto porcentual menor que a média ponderada dos demais países em desenvolvimento. Por seu turno, o investimento tem-se mantido na faixa dos 20% do PIB, também abaixo da média dos países em desenvolvimento. Sabe-se que há uma via de mão dupla entre investimentos e produtividade.

A rigor, os itens da agenda para impulsionar o crescimento com redução de pobreza são conhecidos: redesenhar gastos e políticas educacionais, para que tenham melhor qualidade e capilaridade social em seus resultados; rever gastos públicos para encontrar espaço fiscal para programas de transferência condicional de renda, infra-estrutura e/ou reduzir tributos; atacar as causas da informalidade; etc. O único item talvez ainda não avaliado em sua plenitude na região é o ¿clima de investimentos¿, ou seja, as condições em que os cálculos de investimento são prejudicados por fatores de risco que não têm a ver com os negócios em questão.

Por outro lado, para além do conhecimento daquela agenda, conta mesmo é a disposição para comportar-se como formiga e não cigarra. Olhando-se o aprimoramento de políticas macroeconômicas recentes em muitos países da região, pode-se empregar a gasta imagem do ¿copo meio cheio, meio vazio¿. Antes de celebrar os bons tempos da primavera, melhor seria completar o copo.