Título: Crise ameaça organismos multilaterais
Autor: Caminoto, João e Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2007, Economia, p. B13

O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, organismos multilaterais criados após a 2ª Guerra para servirem como pilares da estabilidade e do desenvolvimento econômico global, estão mergulhados numa crise de legitimidade e governabilidade que, ser não for revertida, pode ameaçar sua sobrevivência nas próximas décadas.

Para os críticos, que não se limitam aos tradicionais militantes antiglobalização, os dois se transformaram em mastodontes anacrônicos que, ao lado de outros organismos internacionais como o G-7, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a própria ONU, precisam ser totalmente reformados para refletir as mudanças ocorridas no cenário internacional nas últimas décadas, como a emergência da China e Índia como potências econômicas.

Políticos, especialistas e diplomatas são praticamente unânimes em reconhecer que a comunidade internacional não pode lidar com questões como pobreza, meio ambiente, estabilidade financeira, doenças, terrorismo, comércio, conflitos ou drogas sem a existência de regras e entidades multilaterais. A questão que se coloca é como lidar com todos esses temas em um cenário político e um equilíbrio de poder bem diferente do que existia há 60 anos.

¿Os anos 90 foram o da esperança e da percepção de que a construção de um consenso internacional seria mais fácil. Mas, após os ataques de 11 de setembro de 2001, vemos o fim de um período de inocência e a maior dificuldade para que consensos sejam formados internacionalmente. Isso, sem dúvida, reflete nas organizações internacionais¿, afirmou o ex-chanceler Celso Lafer.

A crise no Fundo é a mais aguda, apesar do aumento salarial concedido à namorada do presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, ter ocupado as manchetes nas últimas semanas. Após socorrer durante décadas países com crises financeiras, a instituição, desde o colapso da Argentina em 2001, ostenta uma agenda vazia. Os ventos favoráveis da economia mundial nos últimos anos, que elevaram os preços das commodities, reforçaram os balanços de pagamentos da maioria de seu ¿ex-clientes¿ emergentes. Vários, como o Brasil, quitaram suas dívidas com o Fundo.

Muitos países, particularmente na Ásia, acumularam vastas reservas para não ter de voltar a bater às portas do prédio em Washington com o pires na mão. Atualmente, há mais de US$ 4 trilhões em reservas de moeda estrangeira no mundo.

Ironicamente, as finanças do Fundo não vão bem. O seu orçamento anual de US$ 980 milhões foi congelado e o Fundo deve fechar a década com US$ 370 milhões no vermelho. A principal explicação é que o FMI deixou de emprestar aos países em apuros, cujos juros eram sua principal renda. Apenas a Turquia ainda se mantém como grande devedor.

Diante desse aperto financeiro, o Fundo tenta encontrar novas formas para ser financiado no futuro. Entre as propostas, estão um investimento mais agressivo de suas reservas de US$ 9 bilhões nos mercados financeiros, a venda de parte de suas 3,2 mil toneladas de ouro e o aumento da contribuição paga por seus países membros.

Mas, para que essa estratégia avance, o Fundo precisa se adequar aos novos tempos. Seu diretor-gerente, o espanhol Rodrigo de Rato, iniciou um processo de reformulação do sistema de cotas entre os países acionistas, com o objetivo de espelhar com maior justiça a conjuntura econômica mundial, principalmente o peso das grandes nações emergentes. Mas muitos governos, inclusive o brasileiro, consideraram esse passo insuficiente. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, em repetidas ocasiões nos últimos meses pôs em questão a ¿legitimidade¿ do Fundo caso a reforma não seja mais ambiciosa, diluindo o controle das tradicionais potências econômicas, como os EUA.

Mas todos esses problemas significam que o Fundo deveria fechar as portas? A maior parte dos analistas acredita que não. O principal argumento é que, embora a economia mundial esteja vivendo um prolongado período de pujança, essa festa não vai durar para sempre. ¿E, quando os tempos ficarem bicudos, pode estar certo que surgirá uma fila na porta do Fundo pedindo ajuda¿, disse Richard Fox, analista sênior da agência de classificação Fitch Ratings.

A professora Stephany Griffith-Jones, professora do Instituto de Desenvolvimento da Universidade de Sussex, na Inglaterra, é da mesma opinião. ¿Não sabemos que crises vêm por aí, mas sabemos que cedo ou tarde elas virão. O FMI ainda exerce um papel central para lidar com os desequilíbrios na economia mundial.¿

No caso do Banco Mundial, as críticas não se concentram nas atividades de estímulo ao desenvolvimento econômico e social - embora elas existam -, mas sobre seu comando e governança. A presidência de Wolfowitz, um dos ex-integrantes da ala ultraconservadora do governo Bush, deixou claro como a organização pode ser vulnerável à influência política. ¿A tradição de o governo dos Estados Unidos indicar o presidente do Banco Mundial e a Europa o do Fundo precisa ser abolida¿, disse Griffith-Jones.

Embora não sejam mecanismos com o mesmo alcance multilateral, o G-7 e a OCDE também vivem um período de crise. No caso do ¿grupo dos sete países mais industrializados do mundo¿, o problema começa pelo título. Cada vez mais, o processo industrial está sendo transferido a países como a China e Índia. Nos últimos anos, os líderes do G-7 vêm tentando superar essa questão, convidando líderes dos ¿Brics¿ e de outros emergentes para suas reuniões. Em junho, por exemplo, o encontro do G-7 na Alemanha terá mais uma vez a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. ¿Mas não adianta convidar os líderes dos emergentes apenas para um almoço, eles precisam ter um papel nas resoluções do grupo como um todo¿, disse Griffith-Jones.

A OCDE, que reúne os 30 países mais industrializados, também está tentando se adequar aos novos tempos, e deve anunciar neste mês o convite para a adesão de várias nações emergentes, como o Brasil. Mas, a exemplo do que ocorre com vários outros organismos internacionais, está sendo pressionada a promover uma profunda reformulação interna.

Até mesmo a Organização Mundial do Comércio (OMC), que só tem dez anos, já passa por um período de debates sobre sua reforma. Com a negociação da Rodada Doha em um momento crítico, já se questiona até que ponto a entidade vai sobreviver se o processo fracassar neste ano. ¿Há um perigo real de que o sistema multilateral do comércio desabe se a Rodada não conseguir ser concluída¿, afirmou Renato Ruggiero, ex-diretor da OMC e atual executivo do Citigroup.