Título: A derrocada de Tony Blair
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/05/2007, Notas e Informações, p. A3

No seu aplaudido filme A Rainha, de 2006, sobre a glacial indiferença da monarca britânica ao luto de seus súditos pela trágica morte da princesa Diana - compartilhado desde a primeira hora pelo então recém-eleito primeiro-ministro Tony Blair -, o diretor Stephen Frears faz Elizabeth II alertar sutilmente o audacioso político trabalhista para o caráter efêmero da popularidade na vida pública. Era uma cena datada, evidentemente. Em 1997, quando Blair obteve um dos maiores triunfos eleitorais da história do Reino Unido e salvou a Casa de Windsor da bancarrota moral, a ninguém ocorreria antecipar o formidável colapso do prestígio desse determinado visionário escocês de 54 anos, mentor do divórcio histórico do seu Partido Trabalhista com o estatismo e o poder sindical - condensado na expressão New Labour, que entrou definitivamente para o léxico político contemporâneo.

Agora, quando anuncia que não cumprirá o terceiro mandato - ele foi reeleito em 2001 - e se mudará de 10, Downing Street em 27 de junho, apenas 22% dos britânicos dizem confiar nele. Isso nada tem que ver com a inconstância do sentimento popular. Blair só pode culpar a si próprio por sua derrocada. Mais precisamente, por merecer o apelido ¿poodle de Bush¿. Não apenas em razão de sua espantosa e ainda não de todo explicada subserviência ao que de pior os Estados Unidos produziram em matéria de presidentes e de política externa até onde a memória alcança, mas também porque, para mergulhar a Grã-Bretanha na insana guerra ao Iraque, o seu governo imitou o seu aliado do outro lado do Atlântico na propagação deliberada de todas as falsidades sobre o perigo representado por Saddam Hussein, com os seus imaginários arsenais de destruição em massa e suas não menos fantasiosas ligações com a Al-Qaeda de Osama bin Laden.

No dia ainda longínquo em que a tragédia iraquiana for história, é possível que Blair possa ser reavaliado como o líder que, não fosse por aquele singular erro monumental que ele ainda não reconhece, teria sido um dos grandes estadistas de sua longeva nação, se não o primeiro do mundo na virada do século. Só o tempo permitirá enxergar na plenitude a nova topografia econômica, política, institucional e cultural que os seus 10 anos no poder legaram à Grã-Bretanha. De fato, uma década de ininterrupta prosperidade, com os menores índices de desemprego da União Européia - além do abrandamento da desigualdade que se perpetuava desde a era de liberalismo imitigado de Margaret Thatcher -, ainda não é tudo que mudou para melhor nas Ilhas Britânicas graças a Blair. E mais não melhorou porque o efeito Iraque o impediu de completar outro projeto ambicioso: a reforma dos deteriorados serviços públicos nacionais e a modernização do Estado do Bem-Estar Social.

Se fosse para sintetizar em um único instantâneo os êxitos políticos do blairismo na grande ordem das coisas, a escolha óbvia seria a foto literalmente histórica de dias atrás que mostra, rindo, lado a lado, os outrora arquiinimigos irreconciliáveis protestantes e católicos que passaram a governar em parceria a Irlanda do Norte, depois de 3 décadas de guerra civil e 3.500 mil mortos. (Por uma questão de justiça, não se pode ignorar, para esse feito, o persistente trabalho do americano Bill Clinton.)

Mas não foi apenas na esfera doméstica que Blair se revelou um campeão da paz e do direito. Ninguém mais do que ele pressionou Clinton e os outros chefes de Estado da Otan para deter, pela força, a infame limpeza étnica da maioria albanesa (e muçulmana) da província do Kosovo, na antiga Iugoslávia, perpetrada pelas forças sérvias do ditador Slobodan Milosevic.

¿Kosovo foi a melhor hora de Blair¿, julga acertadamente o historiador inglês Timothy Garton Ash, e ápice do que o próprio primeiro-ministro considera a essência de sua política externa - o ¿intervencionismo liberal¿. A sua modalidade pervertida, que desacreditou o princípio perante quase o mundo inteiro, como um precário disfarce para o exercício do poderio americano, foi, naturalmente, o Iraque. E já se pressente que o descrédito dos trabalhistas devolverá Downing Street aos conservadores - salvo se o sucessor George Brown recuperar o capital político malbaratado por Tony Blair.