Título: Gestão pública é coisa séria
Autor: Mellão Neto, João
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/05/2007, Espaço Aberto, p. A2
Em 1881, os EUA provavelmente já eram a nação mais rica do planeta. A Guerra Civil já se encerrara havia mais de década e meia e o país conhecera um ciclo de desenvolvimento nunca antes visto na História universal. O modelo democrático americano era cantado em prosa e verso. Ele se aperfeiçoava com seus próprios erros, vangloriavam-se os sobrinhos de Tio Sam, e não havia impasse que não pudesse ser superado por seus mecanismos de freios e contrapesos. Eis que, naquele ano, o sistema americano enfrentou um de seus mais sérios desafios. A nação assistiu, perplexa, ao assassinato de seu recém-empossado presidente. James Abram Garfield foi baleado numa estação de trens em Washington, em 2 de julho, e veio a falecer dois meses depois, cercado de grande comoção nacional. O motivo do crime era ainda mais estarrecedor: emprego público. O algoz de Garfield era um correligionário dele, inconformado por não ter sido aproveitado na nova administração.
Para melhor compreender o fato há que se reportar aos usos e costumes políticos da época. Até então a administração pública federal norte-americana não era profissionalizada. O partido que vencia as eleições provia todos os cargos públicos com seus correligionários, independentemente da capacitação e das qualificações dos contemplados. Era o sistema de ¿spoils¿, pelo qual se entendia que empregar membros do partido era um incentivo para que seus militantes se sentissem estimulados a continuar trabalhando pela causa. Qualquer semelhança com o que ocorre atualmente em Brasília não é mera coincidência.
A morte trágica do presidente emocionou o país, gerou movimentos políticos para que se pusesse um ponto final naquela nefasta tradição e levou o Congresso dos EUA a tomar providências nesse sentido. Os partidários da profissionalização da administração pública eram alcunhados de ¿go go¿, abreviatura do lema ¿good government¿, que empolgou a nação.
Menos de dois anos depois, em janeiro de 1883, após grande discussão, o Congresso aprovou o Pendleton Act, uma lei que criava um órgão independente na administração pública federal, encarregado de prover os cargos públicos a partir de critérios impessoais, apartidários e lastreados no currículo e no mérito dos candidatos às vagas. Esse órgão passou por constantes aperfeiçoamentos e, depois da reforma administrativa de 1979, passou a denominar-se Office of Personnel Management (OPM), responsável até o presente pela excelência dos serviços públicos federais norte-americanos, seja qual for o presidente ou o partido no poder. Na gestão do OPM, o Poder Executivo não tem maioria e, dessa forma, não pode influir nas nomeações. Calcula-se que o presidente dos EUA possa nomear livremente os titulares de cerca de 5 mil cargos, quantidade pequena levando em conta a complexidade da administração pública daquele país.
No Brasil há cerca de 23 mil cargos federais de livre provimento e o governo os lota com seus correligionários ou os distribui entre os partidos de sua base. Como os militantes petistas são eficientes apenas para administrar passeatas, não é à toa que hoje em dia os recursos públicos se percam muito mais pela incompetência gerencial do que, até mesmo, pela corrupção.
Urge que se dê um paradeiro a este perverso sistema. Neste sentido, estou em via de apresentar, na Assembléia Legislativa, projeto de lei complementar à Constituição estadual que, à semelhança do Pendleton Act, autoriza o governo do Estado a criar um órgão semelhante ao OPM norte-americano. Embora o governo estadual não padeça do mesmo mal que aflige a administração pública federal, é importante que saia daqui o exemplo. Afinal, São Paulo é o Estado mais importante e avançado do País. O que acontece aqui tem reflexos em toda a Nação.
Não seria difícil para São Paulo implementar uma medida como esta. Creio que tanto o governador Serra com o seu secretário de Gestão, Sidney Beraldo, serão receptivos à idéia. Afinal, o Estado já conta, desde 1975, com a Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), perfeitamente qualificada para assumir a função. Caberia a ela, além das funções que já exerce, cadastrar interessados em ocupar cargos de direção e avaliá-los em seu desempenho no exercício dessas funções. E ministraria, diretamente ou em convênios com instituições de ensino públicas ou privadas, cursos de especialização em gestão pública, com objetivo de qualificar a mão-de-obra disponível.
Além disso, seria criada a carreira de gestor público, na qual só poderiam ingressar os servidores que se especializassem nos cursos ou fossem admitidos por notória experiência, em função de seu currículo. Os cargos de direção seriam privativos de gestores públicos, cabendo ao OPM paulista apresentar listas tríplices ao governo com os candidatos mais qualificados para ocupar cada um dos cargos existentes. Como cada nova administração não pode prescindir de seus agentes políticos, ficariam de fora do crivo do OPM os cargos de primeiro escalão (secretários de Estado, presidentes de autarquias e empresas públicas) e de segundo escalão (secretários-adjuntos, chefes de gabinete e auxiliares diretos dos secretários).
Seria também facultado ao poder público estabelecer contratos de gestão com os gestores de cada setor, estabelecendo metas de desempenho para cada órgão e concedendo gratificações pecuniárias aos que cumprissem as metas acordadas.
A profissionalização da gestão pública é uma providência urgente que deve ser tomada para que a administração pública possa fazer frente às cada vez mais complexas demandas da sociedade civil.
Não temos no Brasil um mártir para comover os meios políticos, como tiveram os norte-americanos na pessoa de Garfield. Mas é consenso na opinião pública que é chegada a hora de dar um basta no empreguismo, na fisiologia e no loteamento e esquartejamento do serviço público.
A hora é agora! Mesmo com mais de um século de atraso.