Título: Quais 'espíritos animais'?
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

É comum os economistas citarem o ¿espírito animal¿ ao falarem de empresários que ao investir seguem mais seus instintos espontâneos que cálculos sofisticados quanto ao lucro esperado de seus investimentos. Se coletivamente há empresários possuídos por esse espírito, e se sentem estimulados por expectativas positivas quanto ao futuro, isso pode desencadear um surto de investimentos de significado macroeconômico. Foi Keynes quem mais se destacou por falar desse espírito. Entretanto, conforme esclareceu o jornalista Gabriel Manzano Filho neste jornal (8/5), Descartes usou o conceito bem antes, ainda que noutro contexto, e descreveu esse ¿espírito¿ como um ¿sopro muito sutil¿.

Recentemente o ministro Guido Mantega não foi sutil ao concluir que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) despertou o ¿espírito animal do empresariado¿. Esse despertar não foi visto pelo economista Eduardo Giannetti da Fonseca, que, em entrevista ao Estado (10/5), apontou vários fatores que desencorajam os empresários, como as altas taxas de juros e o baixo crescimento.

Tampouco vejo esse despertar de modo generalizado, mas o tal espírito pode ser encontrado de forma localizada, a qual serve para ilustrar seu significado. Refiro-me ao que se passa no setor sucroalcooleiro, ora em fase de grande expansão no País, impulsionado pela crença de que o mercado de etanol terá futuro muito promissor. Mas esse futuro ainda não está garantido, pois depende, entre outros aspectos, de decisões dos países ricos, que seriam os grandes consumidores. Não obstante, os empresários seguem seus ¿espíritos animais¿ ao intuir que tudo vai dar certo, conforme demonstram os grandes investimentos que realizam no setor.

Outro exemplo vem do setor imobiliário, em que muitos empresários passaram a acreditar no seu maior crescimento, inclusive adotando o passo arriscado de ir à Bolsa para lançar ações de suas empresas, com toda a responsabilidade de oferecer aos novos acionistas um rendimento que considerem satisfatório.

Quanto ao meu espírito, assalta-me, há longo tempo, a preocupação permanente com o que é economicamente mais relevante, o atual ciclo de baixas taxas de crescimento que contamina o Brasil num período que já se mede por século, cerca de um quarto dele. E, diante desse papo em torno de ¿espíritos animais¿, vejo outras formas com que se manifestam no comportamento nacional.

Nessa linha, o governo federal, o ente de maior responsabilidade na promoção do crescimento, está dominado pelo ¿espírito¿ da tartaruga, com movimentos por demais vagarosos. Só no seu segundo mandato o presidente Lula resolveu cuidar do crescimento, anunciando o PAC como o ícone desse período. Há muitas críticas quanto à lentidão com que esse plano se desenvolve, e a recente tentativa de provar o contrário resultou num fiasco para o próprio governo, pois parte das informações que divulgou na ocasião serviu para alimentar as críticas ainda mais.

O PAC já caiu naquela condição em que sua lentidão virou motivo de galhofas. Por exemplo, o jornalista Elio Gaspari disse que para se inscrever como colaborador do plano passaria algum tempo sem fazer nada, em férias. Vi também uma charge na Gazeta Mercantil, onde, por estranho que pareça, o papamóvel era comparado ao PAC-imóvel. Com as coisas nesse estágio, o governo vai precisar de mais que simples fatos para dissipar o ceticismo que cerca o PAC.

No Judiciário, o passo de tartaruga está profundamente arraigado numa cultura jurídica em que a agilidade processual permanece relegada a um segundo plano. Alguns magistrados e advogados percebem o problema, há tentativas de solução, mas ainda sem resultados concretos para cidadãos e suas organizações tão carentes de decisões mais ágeis. Continuam a surgir casos emblemáticos da lentidão, como a notícia recente de que o piloto de lancha que atropelou o iatista Lars Grael, em setembro de 1998 (!), só agora teve sua condenação mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, mas ainda assim a decisão foi objeto de recurso nesse tribunal e de outro pleito que tramita no Supremo Tribunal Federal.

Já no Congresso, o ¿espírito¿ da tartaruga se alia ao de porco na sua influência sobre o comportamento de parlamentares. Um dos casos emblemáticos é a sua reticência em fazer uma lei que aprove ou proíba de uma vez por todas o jogo do bingo e os caça-níqueis. Há vários projetos sobre o assunto, inclusive alguns que datam de 1991, mas a coisa não anda. A situação mostra um dos grandes defeitos da jogatina solta, pois círculos de interesse que gravitam em torno dela se capitalizam com a atividade e ganham força na sua influência política.

Poderia ir adiante com mais comportamentos governamentais comparáveis aos ditados por maus ¿espíritos animais¿, como o de predador ao impor sua carga tributária. Contudo justiça deve ser feita aos bichos, pois no seu reino há também aqueles que poderiam inspirar comportamentos saudáveis. Assim, o PAC seria fortalecido se nos seus gastos o governo seguisse as formigas e as abelhas, famosas pela sua previdência, poupando e investindo para uso futuro, deixando de lado o modelito de cigarra que marca sua ininterrupta festa de expansão dos gastos correntes. Nos investimentos, poderia inspirar-se no castor para construir barragens e no joão-de-barro, em seus programas habitacionais.

Em suma, a discussão sobre ¿espíritos animais¿ é interessante, mas cabe qualificá-la. Há espíritos de todo o tipo e, se há os bons e sutis sopros que estimulam alguns empresários a investir, há também os maus e mais evidentes que levam o governo a permanecer na contramão do crescimento econômico e do desenvolvimento social.