Título: De que serviu a entrevista
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2007, Notas e Informações, p. A3
Descontados o triunfalismo de suas afirmações sobre o estado da economia nacional - como se o Brasil tivesse enfim se radicado no melhor dos mundos possíveis - e a esperteza de soterrar sob uma profusão de palavras a sua patente dificuldade de dar respostas substanciais sobre aflitivas questões do cotidiano, como o chamado apagão aéreo e a impotência do poder público diante da criminalidade, o que ficou de mais importante da segunda entrevista formal do presidente da República à imprensa em quase 4 anos e meio foram dois instantâneos. Um, o do estado de espírito de um Lula em estado de graça, tão convicto do seu desempenho magistral no governo que se sente autorizado a se comparar a um maratonista que, ao ver ¿a faixa de chegada lá¿, está quase ¿atingindo a perfeição¿. O segundo flagrante pelo qual valeu a entrevista, que ele dominou com inequívoca maestria, foi o da sua estratégia política.
Se a exuberância com que Lula se conduziu no evento de quase duas horas - precedido de um longo e surpreendentemente articulado improviso sobre o radioso estado da nação - serviu para evidenciar uma segurança de quem não se vê embaraçado por problema algum e, na circunstância, não se deixou desconcertar por qualquer indagação, as suas respostas no campo da política indicam o quanto ele desenvolveu a idéia-força que o levou ao poder pela primeira vez.
Essa idéia, como se sabe, foi a de pular o muro do gueto das esquerdas para celebrar uma aliança com a burguesia, encarnada naquele que viria a ser o seu companheiro de chapa em 2003, o megaempresário do setor têxtil José Alencar. Quando os companheiros puros e duros se horrorizaram com a perspectiva, Lula os calou ao informá-los de que só assim aceitaria a tetracandidatura ao Planalto. Na coletiva, ele recordou o episódio com uma notável candura.
Perguntado se sentia desconforto por trazer ao governo, no bojo de uma coalizão ¿a qualquer custo¿, conforme o repórter, figuras que não faz muito dele diziam cobras e lagartos - como o deputado Geddel Vieira Lima, do PMDB, e o acadêmico Roberto Mangabeira Unger, imigrante no PRB de Alencar -, ele retrucou que ia dar um exemplo do inevitável e implicitamente necessário preço a pagar quando se depende de alianças políticas. E contou: ¿Eu perdi três eleições, e cada eleição que eu perdia, eu perdia por 15%. Chegou um dia em que alguém me convenceu de que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar o PT, que eu não precisava mais ficar fazendo discurso para agradar os 30% ou 35% que eu tive em todas as eleições. Era preciso que eu me preparasse para ter do meu lado os 15% que faltavam. E eu me preparei e ganhei a eleição.¿ Ganhou, tornou a ganhar e não quer mais saber de pregar aos convertidos.
Pouco se lhe dá o mal-estar da CUT ao ouvi-lo dizer que servidor público - o principal sustentáculo financeiro da central - não pode fazer greve como se fosse trabalhador de fábrica, muito menos como quem tira férias remuneradas. Pouco se lhe dá também que os companheiros petistas torçam o nariz à sua defesa, enfaticamente reiterada, da autonomia do Banco Central. E pouco se lhe dá, por fim, que o PT faça cara feia quando ele observa que, tendo um petista na Presidência, ¿mais é querer muita coisa¿.
Ou, pior ainda, quando leva o aliancismo às últimas, ao admitir que o sucessor que ¿quero fazer¿ em 2010 ¿deve ser tirado de um consenso da base¿. Se isso for seguido ao pé da letra, ou o PT terá o nome forte do qual ainda não há indício ou o consenso o deserdará. De todo modo, Lula deu o recado: ¿Hoje a gente erra (na escolha do candidato) só se quiser, porque você tem pesquisa, estudo científico¿¿
O presidente, critica a oposição, não tem projeto para o País. Mas tem projeto para si. Na coletiva, ele descartou a possibilidade de um terceiro mandato consecutivo, porque seria uma ¿provocação à democracia¿. E porque - isso não disse - a jogada continuísta poderia implodir a coalizão com a qual ele conta para o futuro. A parte assumida do projeto lulista é o mandato presidencial único de 5 anos. A obra na prancheta, uma possível volta em 2015, decerto com o mesmo argumento que usará nos palanques de 2010: ¿Quero que tenha continuidade o que nós estamos fazendo no País.¿