Título: Kirchner cria 'hiperpresidencialismo'
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2007, Internacional, p. A18

O presidente argentino, Néstor Kirchner, completa esta semana quatro anos no poder consolidando um estilo de governo insólito, contraditório e, acima de tudo, bem-sucedido. Há 1.445 dias, quando tomou posse num dos momentos mais dramáticos da história do país, a maioria do argentinos nem sabia pronunciar corretamente seu sobrenome suíço. Pior: grande parte dos analistas políticos duvidava que Kirchner - eleito com apenas 22% dos votos - teria capacidade de concluir seu mandato.

No entanto, mais do que qualquer outro presidente argentino, Kirchner soube improvisar, adaptando-se às circunstâncias políticas e econômicas. 'Se precisasse definir em uma palavra sua gestão, esta seria a de 'hiperpresidencialismo', já que na área política foi o presidente constitucional que, desde 1983, acumulou mais poder para o Executivo em detrimento do Judiciário e do Legislativo', disse ao Estado o analista político Rosendo Fraga, presidente do centro de estudos Nova Maioria. 'Além disso, os governadores estão totalmente subordinados.'

Segundo a última pesquisa realizada pela analista Graciela Rõmer, Kirchner tem 54% de popularidade - o que lhe permite escolher entre concorrer à reeleição nas presidenciais de outubro ou indicar a esposa, a senadora Cristina Fernández de Kirchner. Neste caso, a idéia dele é voltar ao poder em 2011. As pesquisas indicam que Kirchner venceria as eleições presidenciais com mais de 50% dos votos. Se a candidata for Cristina, o clã Kirchner obteria 45%.

TERRA ARRASADA

Nada mal para um presidente que, ao ser eleito, tinha como maior trunfo político o fato de ter governado desde 1991 a distante Província de Santa Cruz, na Patagônia, de apenas 200 mil habitantes. Ao pôr os pés na Casa Rosada, em maio de 2003, a Argentina estava no fundo do poço. Dois anos antes, o país teve cinco presidentes num intervalo de duas semanas. Adolfo Rodríguez Saá, um dos presidentes-tampão, havia declarado o calote da dívida pública com os credores privados - fato que tornou a Argentina um pária do mercado internacional. A pobreza atingia nível recorde, assolando mais da metade dos argentinos. O desemprego passava de 20%. O país tinha 13 moedas paralelas provinciais, além do peso.

Sua primeira missão foi reverter a desconfiança dos argentinos. Kirchner era encarado como um títere de Eduardo Duhalde, seu padrinho político e antecessor. Ele não tinha uma base eleitoral própria, não controlava a máquina do poderoso Partido Justicialista (peronista) e não contava com apoio das massas - que haviam votado nele apenas para impedir que o ex-presidente Carlos Menem (1989-99) voltasse ao poder.

Desde a posse, Kirchner cultivou a imagem de progressista: defendeu os direitos humanos, a condenação dos militares da ditadura (1976-83) e a aprovação do aborto, além de impor limites à Igreja Católica. Mas, ao mesmo tempo, pressionou a mídia como nenhum outro presidente civil e interferiu no Judiciário.

Com o passar do tempo, ficou claro o modus operandi de Kirchner, o denominado 'Estilo K': bater primeiro para depois conversar. Ele se desfez rapidamente de Duhalde, encolhendo o poder de seu poderoso padrinho. Além disso, arrasou o poder residual de seu rival, Menem, e desarticulou a oposição, cooptando diversas lideranças.

MISTURA

No plano econômico, Kirchner adotou um peculiar coquetel de políticas que misturam neokeynesianismo e assistencialismo populista com medidas neoliberais, um superávit fiscal nunca antes visto na Argentina e um acúmulo recorde de reservas no BC. Em relação ao Fundo Monetário Internacional, Kirchner foi ambíguo. Ele disparou a maior coleção de impropérios pronunciados por um presidente argentino contra o FMI. Mas, ao mesmo tempo, pagou nos primeiros três anos no poder US$ 23 bilhões ao Fundo, quitando a totalidade da dívida argentina com o organismo.

Analistas esconômicos dizem que Kirchner foi ajudado por uma conjuntura internacional favorável, com altos preços de commodities e sócios comerciais passivos - entre eles, o Brasil - diante da miríade de exigências protecionistas que impôs aos gritos. O PIB cresceu, em média, 9% por ano em seu governo. Analistas argumentam que o crescimento econômico é apenas fachada, pois esconderia uma brecha social elevada. De quebra, criticam Kirchner por aplicar uma intensa 'maquiagem' no índice de inflação.

Na política externa, Kirchner também se mostrou hábil. 'Está à esquerda de Lula e à direita do venezuelano Hugo Chávez', diz Fraga. É capaz, como fez em 2006, de abraçar o líder cubano Fidel Castro e na semana seguinte ir a Nova York para ser o primeiro presidente argentino a tocar o sino da abertura da Bolsa em Wall Street. 'Você é de esquerda?', perguntou o presidente George W. Bush ao conhecê-lo. A resposta veio com um sorriso: 'Não se preocupe, sou peronista...'