Título: Os problemas dos Exércitos na guerra ao tráfico
Autor: Castañeda, Jorge G.
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2007, Internacional, p. A20

Como resultado de sua experiência no Vietnã, Colin Powell elaborou, às vésperas da Guerra do Golfo, a doutrina que leva seu nome. Esta encerrava várias teses, mas três em particular se tornaram célebres e ganharam caráter de dogma durante uma década no interior das Forças Armadas americanas.

A propósito de uma possível intervenção militar em outro país, Powell argumentava que, em primeiro lugar, os Estados Unidos precisavam ter um claro parâmetro para definir o êxito; em segundo, só deveriam se envolver se contassem com uma força militar arrasadora; e em terceiro, antes de entrar, era preciso saber como sair.

A Doutrina Powell aplicou-se à Guerra do Golfo e, ao menos para seu país, as coisas deram certo. O êxito consistiu em expulsar as tropas iraquianas do Kuwait. Os EUA entraram no Iraque com meio milhão de efetivos e quando o objetivo desejado foi alcançado, eles partiram sem abusar de sua vitória nem buscar a queda de Saddam Hussein ou a captura de Bagdá.

Em 2003, Donald Rumsfeld arquivou a Doutrina Powell; até hoje, não se sabe em que consistirá um já impossível triunfo americano no Iraque; os 150 mil soldados não bastarão; e Washington não sabe como sair do imbróglio.

Esse precedente tem alguma pertinência para a guerra contra o narcotráfico declarada pelo presidente do México, Felipe Calderón, ao tomar posse.

Em 2006, registraram-se pouco mais de 2 mil assassinatos do crime organizado no México. O país e muitos observadores estrangeiros tiveram a impressão - provavelmente acertada - de que o ex-presidente Vicente Fox havia perdido as rédeas da segurança e da ordem no México.

Por essas razões, e seguramente por outras de índole política, Calderón resolveu fazer da luta contra o narcotráfico e da segurança a pedra de toque de sua administração. Ele tirou as Forças Armadas dos quartéis, lançou um grande número de operações conjuntas do Exército, Marinha e polícia federal, e declarou guerra ao crime organizado.

Em 3 de maio, contabilizavam-se 758 execuções no México, um ritmo muito superior ao de 2006. Comenta-se, com muita razão, que os mortos de Fox foram por passividade, cumplicidade ou incompetência, enquanto os de Calderón são o preço a pagar por uma guerra necessária e há muito adiada.

Um problema, porém, é que os altos funcionários encarregados da guerra no governo de Calderón são os mesmos que assumiram responsabilidades quase idênticas no de Fox: o procurador-geral da república, o secretário de Segurança Pública, o secretário da Defesa.

Outro problema reside em um paradoxo. O recurso à retórica da guerra é útil e eficaz, mas também envolve orespeito às regras da guerra. Infelizmente, a aplicação da Doutrina Powell no México prima por sua ausência.

Quando será ganha a guerra do México contra o narcotráfico e a violência? Qual o parâmetro do êxito? Existe uma força arrasadora e os recursos para financiá-la? Qual é a estratégia de saída? Quando as tropas se retirarem das zonas ¿ocupadas¿, como Michoacán, Nuevo León, Sinaloa, Guerrero, Ramaulipas e Tijuana, e as polícias estaduais e municipais voltarem, quem realmente retornará? A lei e a ordem, ou o narcotráfico? O dilema dos presidentes mexicanos anteriores - Ernesto Zedillo e Vicente Fox - que hoje se apresenta a Calderón sobre a participação das Forças Armadas na luta contra o narcotráfico não é exclusivo do México.

Muitos países do continente se viram obrigados a lidar com a falta de opções para combater os cartéis; a muitos governos escapou o caráter contraditório da ingerência militar no que é, no fim das contas, um assunto civil.

Em alguns casos, o dilema é antigo. Peru e Colômbia debatem, há anos, sobre o equilíbrio adequado entre Exército, polícia nacional e ajuda estrangeira para derrotar ou conter o crime organizado. Outros exemplos são mais recentes. O mais ilustrativo talvez seja o caso brasileiro.

O Brasil está numa situação análoga à mexicana nessa questão terrível. Tal como o México, ele havia sido um país de consumo relativamente baixo, de produção limitada ou circunscrita a algumas drogas e, diferentemente do México, de tráfico reduzido. Hoje ele é um grande produtor, um ponto intermediário nas rotas para a Europa e, sobretudo, um mercado de consumo crescente.

Tal como no México, suas polícias estaduais e municipais se mostraram impotentes e/ou cúmplices do narcotráfico. As favelas e cárceres de São Paulo, Rio de Janeiro e outras grandes cidades, ou estão nas mãos de quadrilhas e narcotraficantes, ou nas mãos das polícias locais: o que dá quase no mesmo.

Algumas semanas atrás, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, solicitou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a intervenção do Exército: daí as cenas aterradoras de blindados tropicais patrulhando as proximidades de Copacabana e Ipanema.

Lula resiste. Isso levou o governo brasileiro a estudar alternativas. Uma delas é dolorosa para um país verdadeiramente federalista e também foi proposta para o México: a criação de uma polícia nacional, de preferência única, preventiva e investigativa, com efetivos suficientes para se transformar numa força eficaz e respeitada, ao estilo da Polícia Nacional de Carabineiros do Chile.

A solicitação carioca provocou um grande debate sobre as condições da intervenção militar. Surgiram vários argumentos contrários a ela. O primeiro é clássico, mas por ser tradicional não é menos pertinente. Sabe-se quando tirar as tropas dos quartéis, mas nem sempre como devolvê-las a eles. No Brasil, onde as Forças Armadas passaram tanto por períodos de institucionalidade como de envolvimento direto na vida política (o mais recente entre 1964 e 1985), o assunto não é menor.

Outro argumento, talvez mais superficial, mas não descartável, é o econômico. É muito mais caro manter as tropas fora dos quartéis do que dentro.

Além disso, como o uso do Exército não pode ser uma solução definitiva - e, ao mesmo tempo, pode produzir a ilusão da imediatez -, em algumas ocasiões ele se converte num pretexto para postergar uma solução permanente, qual seja, uma polícia nacional eficaz e bem equipada.

No México, iniciou-se a criação de uma polícia dessa natureza em 1998; ela não progrediu - conta hoje com apenas 9 mil efetivos -, em parte por esse motivo.

Por último, destaca-se no Brasil a lógica falta de preparação do Exército para o que é, em ultima instância, um trabalho policial. Os militares brasileiros (e, até onde se sabe, os mexicanos também) reconhecem que não estão preparados para o trabalho de batidas, patrulhamento de cidades, detenções, investigações, interrogatórios e desarmamento de populações civis, às vezes jovens e desesperadas - isto é, para tarefas policiais.

Por isso, consideram que o risco de erros, de excessos e, sobretudo, de alienação da população civil ante as quase certas violações dos direitos humanos pode transformar a boa imagem que o Exército possui, em geral, entre as pessoas.

A ponto de, no Brasil, as autoridades aceitarem, de maneira privada, que uma das razões pelas quais se enviou um contingente militar de manutenção da paz ao Haiti, comandado por um brasileiro, foi para ele ganhar a experiência e a sensibilidade necessárias para atuar em zonas urbanas hostis.

A guerra contra o crime organizado será de fato uma guerra? Se for, poderá ser ganha? E, se a vitória for viável, será possível pagar seu custo? Ninguém, seja no México, no Brasil ou em qualquer parte, tem respostas definitivas para essas questões. Mas as sociedades - e os governos que as conduzem - devem discuti-las para não ir à guerra, justamente, sem fuzil.