Título: 'Problemas de caráter podem ser acentuados no sacerdócio'
Autor: Godoy, Marcelo e Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2007, Vida&, p. A28
Gianpaolo Salvini é um jesuíta que dirige há 21 anos a revista La Civiltà Cattolica, uma publicação quinzenal editada há 157 anos pelo ordem fundada por Santo Inácio de Loyola. La Civiltà Cattolica não é qualquer revista. Seu diretor é sempre designado pelo superior-geral da Companhia de Jesus, mas deve ter a aprovação da Santa Sé. É ele quem tem a missão de ser o elo entre a publicação e as autoridades eclesiais. As provas da revista devem ser enviadas à secretaria de Estado do Vaticano para exame e aprovação. Formalmente, a revista, dizem vaticanistas como Sandro Magister, 'não é um órgão oficial nem mesmo oficioso da Santa Sé'. Entretanto, saber como ela é feita é importante, pois permite perceber as orientações do Vaticano. Salvini estudou economia na Universidade Católica de Milão e esteve por três anos no Brasil pesquisando a economia do Nordeste. Observador atento da vida da Igreja, estudou os motivos que levaram à recente perda de sacerdotes. Eis a entrevista que ele deu ao Estado.
Quais são as principais causas que levam os padres abandonar o sacerdócio?
As causas do abandono por parte dos padres são variadas; provavelmente jamais há uma única causa para isso. Acredito que existam muitos casos de instabilidade afetiva que aumentam com o tempo, tornando a situação sacerdotal dificilmente suportável. Mas existem também crises de fé, conflitos com os superiores eclesiásticos ou religiosos, dificuldade com o magistério da Igreja, situações de grande solidão que não se consegue suportar, dificuldades de caráter e, freqüentemente uma profissionalização excessiva em uma especialização leiga que faz, praticamente, desaparecer o primado da dimensão sacerdotal e apostólica explícita.
Como a Igreja pode enfrentar esse fenômeno?
Em vez de enfrentar, talvez se trate de prevenir. Creio que se deva estar mais atento à seleção dos candidatos ao sacerdócio. Se um jovem apresenta graves dificuldades de caráter ou desequilíbrios afetivos, estes, em uma vida tão exposta como a dos sacerdotes, não são destinados a diminuir, mas a se acentuar. Melhor seria aconselhá-los a tomar um outro caminho. Pode-se ajudar os sacerdotes, especialmente os jovens, a viver em comunidades fraternas, ajudando-se. Mas, sobretudo, penso que é necessário insistir sobre a vida espiritual e sobre as motivações de fundo pelas quais alguém se faz sacerdote: devem ser motivações de fé e não de realização profissional, ainda que a gratificação no próprio trabalho ajude todos a se sentirem realizados e amados.
Mas a Igreja quer enfrentar esse problema ou esse papado pensa que uma Igreja menor seria, de fato, uma Igreja mais santa, sã e melhor?
A Igreja está certamente preocupada com o fenômeno da evasão dos padres, às vezes muito capazes, que ela formou durante anos de seminário e de estudos, e procura entendê-los para remediar a situação. Mas não creio que ninguém pense em uma Igreja de poucos eleitos. A mensagem do Evangelho, por vontade de Jesus, se destina a ser anunciada a todas e a todos e não a ser reservada para uma elite. Isso não impede que, em uma sociedade muito secularizada como a nossa, muitas vezes os crentes se transformem em minoria e sejam o lêvedo na massa. Em muitos países europeus já o são. Mas a 'boa nova' deve ser proposta com coragem a todos, e a Igreja terá sempre no seu interior gente mais praticante e outros muito menos entusiasmados. Uma Igreja feita somente de 'puros' não é a do Evangelho.
Como conduzir a Igreja ao aggiornamento no sentido do Concílio Vaticano II em nosso dias? Talvez vivamos dias de observância de uma hermenêutica, uma interpretação dos textos que prega a continuidade em vez de ruptura com as tradições anteriores ao concílio?
O Concílio Vaticano II permanece hoje como ontem ponto de referência para toda a Igreja, como Bento XVI reafirmou diversas vezes. A Igreja se sente caminhando com toda a humanidade, em união com todas as mulheres e os homens de boa vontade na criação de um mundo mais fraterno e mais humano e deve evitar a tentação de se sentir, como no passado, uma fortaleza sitiada. O Vaticano II abriu a Igreja a um olhar de maior simpatia sobre o mundo e os seus problemas. Com quem pensa de modo diverso, a Igreja procura o diálogo e não o confronto. Isso não significa esconder os problemas que existem também para a Igreja, que muitos gostariam de transformar em uma espécie de depositária laica dos valores cívicos tradicionais ou da civilização ocidental, em vez de portadora de uma mensagem de fé que marca e mobiliza. O perigo de hoje, no mundo ocidental, é a separação da fé e a indiferença e não a perseguição - o que também ocorre mesmo em vários países onde se reafirmam, mesmo com violência por parte de alguns grupos, religiões tradicionais como Islã e Hinduísmo.
Será, como dizem os críticos, que esse papado dará mais importância à interpretação dos textos sagrados do que às coisas da Terra, talvez porque veja somente decadência nos negócios feitos neste mundo, pois o que importa é construir a Cidade de Deus?
Bento XVI é consciente dos perigos de uma civilização, como a européia ou a americana, que, em certos aspectos, é relativista, cética e libertária, cujo horizonte é limitado a esse mundo e aos seus bens, esquecendo de olhar para o céu e as coisas eternas, ao essencial da fé e ao significado profundo da existência humana. Mas sabe também muito bem que o cristão é chamado a viver nesse mundo e nas fadigas cotidianas sem perder de vista a mensagem da fé. Na América Latina, e no Brasil em particular, me parece, porém, que as pessoas tenham uma fé mais espontânea e sejam levados muito mais do que nós europeus a viver a presença de Deus na vida cotidiana. Não diria que o papa subestima a Cidade dos Homens em relação àquela de Deus, mas procura recordar que a primeira perde o significado se não é orientada pela segunda, ainda que, neste mundo, a Cidade de Deus jamais será plenamente realizada.
Podemos dizer que, a exemplo de Santo Agostinho, que procurou conciliar fé e razão, Bento XVI tenta fazer o mesmo? Essa seria uma das chaves do seu pensamento: conciliar eros e ágape, fé e razão, o classicismo de Mozart e o rococó bávaro, tradição e modernidade?
Como bom teólogo, papa Ratzinger não se cansa de sublinhar a necessidade de que a fé não esteja separada da razão. Todos os fundamentalismos e os usos instrumentais da religião nascem do abandono da razão e da prevalência do fanatismo irracional. Isso não impede que a fé seja um dom de Deus e não fruto de uma conquista da nossa razão. Mas o cristão, como diz São Pedro, deve saber a razão da esperança que está nele. Creio que exista muito de verdade no que vocês dizem sobre o desejo de Bento XVI de conciliar alguns pólos opostos da vida: eros e ágape, razão e fé (sobre o rococó bávaro e Mozart sou menos competente) etc. É, no final das contas, o problema da encarnação, da relação entre o elemento material e o espiritual, que se propõe em cada época. Para o cristão, não se trata de eliminar um dos dois, mas de colocá-los em um equilíbrio que deve ser sempre renovado e reinventado, porque há sempre um perigo de cair no espiritualismo fundamentalista ou no materialismo fechado aos valores do Evangelho.
Os motivos da perda de fiéis são semelhantes aos que fazem os padres abandonar a Igreja?
Em parte são semelhantes: a religião se tornou um elemento social menos dominante, que confere ao padre um papel social e aos crentes a consciência de fazer parte de uma sociedade cristã. Hoje é menor a pressão social que mantinha unida uma sociedade na qual todos eram cristãos, ou deviam fingir sê-lo para não parecer marginais. A sociedade de hoje é pluralista: estão presentes nela ideologias diversas e conflitantes entre si. Os praticantes se reduzem em todas as religiões. Também nos países islâmicos os praticantes são uma minoria de fato. Não creio que haja menos necessidade de espiritualidade e de religião, também entre os jovens, mas não se adere mais a uma fé oficial e às suas formas institucionais. Cada um cria para si antes uma religião, recolhendo tanto os elementos quanto as normas de comportamento que julga oportunas das várias religiões à disposição: a eucaristia dos católicos, a meditação dos budistas, as normas sexuais dos modelos apresentados pela televisão etc., esquecendo, ao menos no caso dos católicos, que a nossa é uma religião revelada, não inventada por padres e manipulável à vontade nos seus elementos fundamentais.
O que permanecerá da viagem de Ratzinger ao Brasil e quais as conseqüências dela para o papado?
A resposta devem dar vocês, brasileiros, e não nós europeus. Creio que o papa tenha experimentado pessoalmente a grande fé, alegre e espontânea, de tantos brasileiros, maturada nos sofrimentos cotidianos. A América Latina é, para mim, o continente mais fiel à Igreja, talvez o mais criativo também nas suas manifestações de fé. E creio que da presença do papa e do quanto ele disse acerca do amor e a preferência da Igreja pelos pobres, o continente retirará também maior força e empenho para demonstrar que a mensagem cristã é capaz de transformar as estruturas da sociedade no sentido cristão e, por isso, mais justo. Coisa que nem sempre ocorreu no passado.
O futuro da Igreja está no Terceiro Mundo ou ela deve olhar para a Europa como o lugar onde se jogará o seu porvir?
A Igreja deve ter rosto mundial e não somente o europeu ou terceiro-mundista. Na Europa, provavelmente, a reflexão teológica alcançou resultados de grande valor e profundidade em benefício de todas as Igrejas. Mas nos continentes novos existe uma vitalidade e uma criatividade de grande valor e profundidade, talvez, um pouco apagadas na velha Europa. Os europeus temem perder o quanto criaram em séculos de operosidade cristã. A África ou a América Latina são continentes que criam, até mesmo no sofrimento que cada nascimento comporta. Nesse sentido creio que o termo 'esperança' seja muito bem adaptado para exprimir o futuro desses povos novos, fruto às vezes de um doloroso caldo histórico de culturas, mas justamente chamadas , nesse nosso tempo, de 'povos da esperança'.