Título: Desencantos e avanços
Autor: Fornazieri, Aldo
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

A maior parte das análises que estão sendo feitas sobre o novo escândalo revelado pela Operação Navalha reafirma o velho desencanto em relação ao sistema político do Brasil. O problema é que o desencanto é um traço do fluido caráter da alma brasileira, uma herdade do sentimentalismo português, do seu desleixo, de sua melancolia, tão bem captados por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e por Paulo Prado em Retratos do Brasil.

Da mesma forma, a tradicional corrupção é uma herança portuguesa. A corrupção prospera num ambiente de existência de um emaranhado de leis inúteis e tendenciosas em combinação com uma realidade social na qual vale o mando pessoal, e não a lei. O caráter tendencioso da lei se revela precisamente nisto: ela pune os fracos e privilegia os fortes. Ao impor esta funcionalidade, faz valer o mando pessoal do forte, e daí a corrupção, e não a efetividade da lei.

Isso tudo explica o fato de que a Polícia Federal prende e a Justiça solta. Se os homens de colarinho branco não são punidos e são privilegiados pela lei, determinados agrupamentos que se situam no patamar inferior da hierarquia social se sentem no direito de praticar a violência para satisfazer seus desejos e suas carências. Combina-se assim um ciclo histórico de violência incontida e de corrupção ilimitada.

Vista pelo ângulo histórico e por aquele traço de caráter da alma brasileira, de fato, a Operação Navalha suscita desencanto. Afinal, trata-se de mais um escândalo que se articula na seqüência do impeachment de Fernando Collor, do escândalo dos Anões do Orçamento, da Pasta Rosa, do Sivam, das privatizações das telecomunicações, do mensalão, dos sanguessugas e das inúmeras outras quadrilhas laceradas pela Polícia Federal nos últimos anos.

Mas um olhar histórico mais efetivo e menos nostálgico sobre o que vem acontecendo no Brasil nos últimos anos cobra e exige uma outra conclusão: se é verdade que o sistema político continua provocando desencanto, não há como deixar de reconhecer que se está processando também um avanço institucional. A prova deste avanço institucional se sacramenta na nova relação do governo político com duas instituições estatais: o Banco Central (BC) e a Polícia Federal.

Em nenhum outro momento de sua história o Banco Central operou com tanta autonomia como a que exerceu nos últimos quatro anos. Por mais críticas que se possam ter ao excesso de zelo do BC, o fato é que ele foi decisivo nas conquistas das boas condições macroeconômicas de que o Brasil goza no momento.

O mesmo se pode dizer da Polícia Federal. Em nenhum momento de sua história ela teve tanta autonomia quanto sob o governo Lula. Em nenhum momento suas ações foram tão espetaculares e tão eficazes no desbaratamento de quadrilhas criminosas de diversas ordens. Assim, é preciso concluir que, se a corrupção sempre existiu no Brasil em elevados graus, uma Polícia Federal autônoma e eficaz como a que temos agora nunca existiu. Tal como no caso do Banco Central, esta condição da Polícia Federal precisa ser consignada como avanço institucional. É precisamente a consolidação da função autônoma - embora não sem fiscalização e mecanismos de controle democrático - das instituições de investigação, de coordenação e de definição de políticas de Estado que faz a democracia avançar e se consolidar.

Pode até ser verdade que a Polícia Federal tenha cometido alguns exageros em suas ações. Exageros que devem ser cobrados e contidos. Mas, inegavelmente, o saldo de suas ações é muito mais positivo do que negativo para a democracia. E, agora, na medida em que as ações da Polícia Federal atingem os homens de colarinho branco e os políticos, começa a haver movimentações para cobrar limites e controles em suas ações.

A opinião pública democrática deve dizer exatamente o contrário: o sistema político deve conceder formalmente autonomia à Polícia Federal. O seu limite deve ser a lei. Esta deve ser uma regra para todas as instituições tipicamente de Estado, tais como Polícia Federal, Banco Central, Receita Federal, Forças Armadas, etc. Mudar a forma de fazer o orçamento, conferindo-lhe uma dimensão determinativa, e definir que somente as bancadas partidárias podem fazer emendas também contribuiria de forma acentuada para trancar as torneiras da corrupção.

E se há algo que deve ser modificado é a lei, particularmente o Código Penal. A lei precisa ser modificada, por exemplo, para que os Zuleildos Veras da vida e os políticos que se corrompem respondam a seus processos na cadeia, e não soltos e usufruindo os recursos que roubaram do povo.

O que a empresa Gautama e os políticos que se corromperam fizeram não pode mais ser entendido como algo inerente ao processo político, mas como algo pertencente ao processo criminal. E o que a Polícia Federal faz no combate à corrupção não pode ser entendido como uma interferência política de um órgão policial. Deve-se conferir a estas ações sua verdadeira natureza: trata-se de ações policiais para combater quadrilhas criminosas.

Isto quer dizer que é preciso expurgar da noção de ¿política brasileira¿ a idéia de que a corrupção é algo normal e inerente a ela. Esta é uma condição para que se transite para um novo patamar de moralidade social definido pela noção de que a corrupção é algo radicalmente incompatível e altamente condenável nas atividades da vida em sociedade e, particularmente, nas atividades relativas à esfera política. Mais do que as análises desencantadas, são estas cobranças e estas mudanças, que devem ser exigidas pelo ativismo cívico da opinião pública democrática, que farão consolidar avanços institucionais.