Título: Sinais de guerra fria
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2007, Notas e Informações, p. A3

À margem dos horrores no Oriente Médio, um novo foco de tensão internacional vem se expandindo sem cessar nos últimos meses e semanas. Trata-se da acentuada deterioração das relações entre a Rússia e o Ocidente - a ponto de se poder afirmar, sem exagero, que elas nunca estiveram piores desde o desaparecimento da União Soviética. Aliás, eram melhores ao tempo do último líder da URSS, Mikhail Gorbachev. Agora, no entender de muitos, o clima de crispação, motivado por uma escalada de desentendimentos e acusações recíprocas, ressuscita uma expressão que se imaginava sepultada: guerra fria.

A diferença é que não se está mais diante de um confronto de ideologias e sistemas econômicos - apesar da exacerbação do nacionalismo, da eslavofilia e do sentimento antiocidental orquestrados pelo autocrático (e popular) governo do presidente Vladimir Putin, fazendo amplo uso da mídia que conserva apenas vestígios da independência adquirida no processo de democratização do seu vasto país. Por sinal, desde a ascensão de Putin, em 2000, 14 jornalistas foram assassinados na Rússia, considerada o terceiro mais perigoso lugar do mundo para a profissão, depois do Iraque e da Argélia.

Na raiz do novo conflito estão os impulsos pavlovianos do Kremlin para, de um lado, se impor aos antigos Estados bálticos vassalos, como a Estônia e a Lituânia - que não só conquistaram a independência, mas aderiram à Organização do Tratado do Atlântico Norte -, e, de outro, influir nas políticas da União Européia (UE), valendo-se do fato de que a Rússia fornece 25% do gás e proporção crescente do petróleo consumidos pelos membros da UE. A isso se soma o problema militar-estratégico criado pela decisão americana de instalar escudos antimísseis na Polônia e na República Checa, com a plena concordância de ambas, a pretexto de neutralizar eventuais ameaças iranianas.

No mês passado, Putin comparou o supremacismo da política externa de Bush ao do 3º Reich de Hitler. Dias atrás, acusou a Casa Branca de ameaçar, sem motivo algum, a paz na Europa central. De seu lado, o vice-primeiro-ministro russo e ex-ministro da Defesa, Sergei Ivanov - possível candidato de Putin à sua sucessão, em março de 2008 -, advertiu sombriamente que ¿uma espada mais eficiente pode ser criada para perfurar qualquer escudo¿, tipo de retórica que não se ouvia de um dignitário russo desde os tempos de Leonid Brejnev e Ronald Reagan. As escaramuças já não são retóricas, como demonstram dois fatos recentes.

O primeiro foi o estrepitoso fracasso da cúpula russo-européia, em Samara, às margens do Volga. A presidente de turno da UE, a chanceler alemã Angela Merkel, trabalhava para que resultasse do encontro um tratado abrangente sobre comércio, investimento e transporte de petróleo e gás. Nada mais oportuno, dado que a gigantesca estatal russa Gazprom, presente em 16 dos 27 países da União, vende energia diretamente ao consumidor final na Alemanha, França e Itália. Mas, provavelmente para sabotar o encontro, o governo russo cerceou ou deteve opositores de Putin, liderados pelo enxadrista Garry Kasparov, que pretendiam se manifestar em Samara - o que o Kremlin prometera autorizar.

A dirigente alemã reagiu de forma inusitada. Na entrevista coletiva, ao final da descarrilhada conferência, ela disse, diante das câmaras e de um impassível Putin, que olhava fixamente para a frente enquanto a ouvia, que não se deve reprimir manifestações pacíficas como se reprimem atos de vandalismo. Putin já tinha ouvido do presidente da Comissão Européia, José Manuel Durão Barroso, que qualquer ação contra um membro da União será considerada hostil à organização toda. (Dias antes, no primeiro ciberataque a um país, a Estônia inteira ficou sem internet. Os perpetradores foram hackers russos.)

A segunda razão de acrimônia foi o pedido britânico a Moscou, recusado de pronto, para a extradição do ex-agente da KGB Andrei Lugovoi, ligado ao esquema de Putin, pelo envenenamento, em Londres, do ex-colega naturalizado inglês Alexander Litvinenko, ano passado. Antes de morrer, ele culpou o próprio Putin pelo crime. A Grã-Bretanha poderá levar o caso ao G-8. ¿Assassínio é assassínio¿, disse o porta-voz do premier Tony Blair.