Título: A culpa é das emendas parlamentares
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/05/2007, Economia, p. B2

Está claro que uma das fontes primárias de corrupção é o sistema das emendas parlamentares individuais. Cada parlamentar federal (deputado ou senador) pode apresentar emendas ao Orçamento da União propondo gastos de até R$ 5 milhões. Esse dinheiro pode ter aplicações variadas, desde obras de infra-estrutura (pontes, barragens, estradas) até a compra de ambulâncias ou a construção de quadras esportivas em determinado município.

Ocorre que o gasto assim fixado na lei orçamentária não é automático nem obrigatório. Pode ou não ser feito e isso depende do Executivo federal. No limite, é o presidente da República que libera ou não o dinheiro de cada emenda. Quem acompanha regularmente o noticiário político de Brasília sabe como funciona: nas vésperas de determinadas votações importantes, o Executivo ¿libera¿ emendas dos parlamentares de cujo voto necessita.

Essa é a oportunidade de uma corrupção política. O presidente distribui dinheiro público não em troca de vantagens pessoais, mas em troca de apoio.

Há oportunidades de outro tipo.

Eis como a coisa funciona ou pode funcionar: uma empreiteira inventa um projeto de construção de uma barragem em determinado município. A prefeitura assume o projeto e o deputado da região passa a patrociná-lo, pelo que apresenta emenda individual prevendo o gasto correspondente.

Isso feito, tanto o parlamentar quanto o prefeito precisam batalhar para liberar o dinheiro. Os ministros políticos e o núcleo do governo federal controlam cuidadosamente a liberação das emendas. Sabem a todo momento quais parlamentares estão mais ¿atendidos¿ e os que ainda estão na fila.

Há exigências técnicas. O projeto precisa estar adequado à orientação geral do orçamento. Só é possível, por exemplo, pedir dinheiro para a construção de quadras esportivas porque há um programa nacional prevendo a disseminação da prática de esportes e lazer.

Mas isso é fácil de fazer. As regras são amplas o suficiente para enquadrar até fontes luminosas. Cabem perfeitamente em programas de recuperação urbana, por exemplo.

Mais difícil é obter dos ministérios o certificado de que a obra é adequada, está nas prioridades e assim por diante. Aqui, a coisa é mais política - e aqui entram os lobbies, aplicados tanto pelos políticos envolvidos quanto pelas empresas interessadas na execução da obra ou da compra.

Assim, o processo passa pelo ministério da área - por exemplo, Ministério dos Esportes, para as quadras, da Saúde, para as ambulâncias, das Cidades, para a fonte luminosa - e pelos Ministérios do Planejamento e da Fazenda, para a liberação da verba e, depois, para o pagamento efetivo.

A todo momento, portanto, é preciso negociar e obter o O.K. de autoridades e políticos. Isso pode ser feito na base do patriotismo e do espírito público, mas também em troca de dinheiro para a festa de casamento ou para a campanha eleitoral.

Não se pode dizer, é claro, que seja tudo bandalheira e que toda emenda individual é objeto de corrupção. Na verdade, praticamente todas as emendas propõem gastos justos e necessários às comunidades as quais se destinam. Quem pode ser contra a compra de um par de ambulâncias? Ou de uma barragem para garantir água a uma população assolada pela seca?

E essa é a justificativa que se utiliza para sustentar a prática das emendas individuais. O problema, se diz, é o caráter não compulsório do orçamento, o fato de o Executivo ter o poder de decidir quais emendas serão ¿pagas¿, no jargão brasiliense. Por isso, muitos políticos e analistas entendem que tudo estaria resolvido se as emendas fossem automáticas, de aplicação compulsória.

Mas é uma proposta ruim. Engessa o orçamento, obriga o governo a gastar mesmo em momentos de dificuldades financeiras e mesmo que a emenda não tenha nada a ver com as prioridades nacionais. Além disso, isso não eliminaria toda a prática de seleção, apresentação e liberação do dinheiro das emendas. Obviamente, não poderiam ser pagas todas ao mesmo tempo, de modo que necessariamente haveria fila e escolha - e, de novo, estamos no ambiente propício às práticas desvendadas nos últimos tempos.

Ou seja, dada a extensão da roubalheira já observada, a solução é aproveitar o momento para eliminar as emendas individuais. Isso para começo de conversa, que deve seguir com um debate sobre a reforma da lei orçamentária, de modo a tornar todo o processo mais transparente, mais técnico e menos aberto às oportunidades de troca.

Deputados e senadores perderiam o direito das emendas particulares em troca de uma participação mais ativa na elaboração do orçamento, definindo as prioridades nacionais, podendo decidir tudo, se vai mais dinheiro para saúde ou educação, para obras ou para gastos com pessoal, para o Bolsa-Família ou para estradas.

Hoje, o orçamento é engessado e os parlamentares podem mudar pouquíssima coisa na proposta apresentada pelo governo federal. Mas podem gastar, cada um, seus R$ 5 milhões por ano, a seu gosto. Muitos acham isso melhor.

Uma exceção é o senador Almeida Lima (PMDB-SE), que apresentou projeto de emenda à Constituição eliminando as emendas parlamentares (individuais e coletivas) e as transferências voluntárias de verbas da União para Estados e municípios. Um excelente ponto de partida para a reforma.