Título: Atrás dos holofotes, guerra na PF
Autor: Santa Cruz, Angélica
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2007, Nacional, p. A8

Com 230 pessoas grampeadas, pelo menos 700 linhas telefônicas monitoradas e 16 meses de duração, a Operação Navalha exibiu publicamente os enroscos entre políticos e a turma de Zuleido Veras - mas deixou em seus bastidores um amontoado de trocas de acusações entre delegados de primeiro escalão e vazamentos de informações que mostram uma Polícia Federal em crise, incapaz de investigar seus próprios quadros e metida em uma disputa interna pelo poder. Vista a partir de Salvador, onde tudo começou, a linha do tempo da operação mostra uma vasta rede de intrigas entre policiais e um punhado de trapalhadas - um enredo que lembra os filmes de Martin Scorsese.

A Polícia Federal começou a ser oficialmente investigada em janeiro do ano passado, por causa de vazamentos de informações em outra operação, a Octopus. Criada para monitorar oito empresários que costumam freqüentar denúncias na cidade há mais de uma década, a Octopus foi montada em uma casa alugada do bairro de Itapuã - uma grampolândia oficial cheia de equipamentos de escuta e agentes federais encarregados de operá-los. Lá pelas tantas, os empresários investigados foram flagrados nos grampos fazendo ironias sobre o pequeno quartel general. 'Já esteve na casinha de Itapuã hoje?', brincou um deles ao telefone.

Como ficou claro que o grupo sabia da investigação - e o vazamento só poderia ter saído de agentes da PF -, o juiz da 2ª Vara Federal de Salvador, Durval Carneiro Neto, mandou desativar a casa da arapongagem em Itapuã e avisou a Divisão de Contra-Inteligência da PF em Brasília, setor que investiga policiais. Foi criada, então, a Operação Navalha - para investigar apenas policiais federais.

Quinze policiais de 3 Estados foram monitorados por colegas de Brasília. Os superintendentes da Polícia Federal no Ceará, em Sergipe e na Bahia tiveram escutas ambientais colocadas em seus gabinetes. 'E aí foi uma confusão atrás da outra...', resume o juiz Durval Carneiro Neto, que autorizou as escutas.

'GALHO FRACO'

Em poucos meses, a iniciativa de investigar policiais federais foi por água abaixo - por conta de vazamentos dentro da própria polícia ou até de episódios surreais. Em abril, por exemplo, investigadores da Divisão da Contra-Inteligência de Brasília apareceram na Infraero do aeroporto de Salvador pedindo cópias de registros de imagens. Os funcionários da Infraero ligaram para o então superintendente da Polícia Federal da Bahia - um dos grampeados - perguntando se os homens eram mesmo policiais. 'Eu lá no meu gabinete, sem saber que estava com escutas colocadas por eles, e a Infraero me perguntando se eu sabia quem eram! Uma coisa de outro mundo. Mandei segurar aqueles homens lá e liguei para todo mundo, perguntando se eles eram mesmo policiais ', reclama Paulo Fernando Bezerra, hoje secretário de Segurança Pública da Bahia.

Bezerra afirma que telefonou para Renato Halfen da Porciúncula, diretor da Inteligência Policial em Brasília, para saber o que era aquilo. 'Ele dizia apenas: 'é galho fraco, pode soltar'. E eu agora sei que galho fraco quebra com macaco gordo!'

Um mês depois da trapalhada, outro incidente: dois graúdos policiais investigados deixaram seus cargos. O superintendente da PF do Ceará, João Batista Paiva Santana, foi exonerado. Outro delegado, de Sergipe, pediu para sair. Os investigados foram dispensados mesmo com a operação estando sob ação controlada - mecanismo jurídico que permite que pessoas monitoradas pela polícia não sejam presas em flagrante, para não atrapalhar investigações maiores. 'Ficou claro que todos os policiais investigados já tinham conhecimento da operação, ou por vazamento de informações ou por operações desastrosas. E altos dirigentes da Polícia Federal apressaram-se em tomar medidas administrativas para afastar os investigados. Foi uma operação abafa', diz o juiz Carneiro Neto.

Segundo ele, a investigação de policiais na Operação Navalha passou a ser lentamente esvaziada. Em abril do ano passado, conta Carneiro Neto, os delegados da Contra-Inteligência pediram a suspensão do monitoramento de um dos superintendentes investigados. O juiz determinou que o delegado continuaria sob investigação. 'Mas, nos relatórios que se seguiram, a polícia não deu mais nenhuma informação sobre ele - e passou a dizer que as escutas tinham problemas técnicos', conta. Em relato de quatro páginas que escreveu para resumir a maneira como a PF deixou de investigar seus quadros, o juiz anota o seguinte: 'Por estrita opção da Divisão de Contra-Inteligência, todas as investigações posteriores voltaram-se para alvos externos aos quadros da Polícia Federal.'

Meses depois, e por acaso, as escutas chegaram até Zuleido Veras - e acabaram revelando a máfia das obras em toda a sua extensão. O caso saiu das mãos do juiz federal e foi para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) porque alguns dos suspeitos tinham foro privilegiado. 'Aí transformaram a investigação em outra coisa - e os policiais saíram de cena', diz o juiz.

BRIGAS POLÍTICAS

No fim das contas, o pedaço da Operação Navalha dedicado aos policiais resultou em relatório produzido pela Contra-Inteligência da PF e usado pela ministra Eliana Calmon como base para pedir o afastamento por dois meses do diretor-executivo da instituição, Zulmar Pimentel, do atual superintendente na Bahia, Antonio Cesar Fernandes Nunes, e do ex-superintendente Paulo Fernando Bezerra.

A Polícia Federal está em plena disputa interna pela sucessão de seu diretor-geral, Paulo Lacerda - que já avisou que pretende sair do cargo depois dos Jogos Pan-Americanos. Por isso, os afastados apontam no relatório um festival de intenções políticas. 'Estou perplexo, fui pego de surpresa por esse ato vil, pela inclusão do meu nome em um relatório que não vi, para o qual nem fui ouvido', diz Zulmar Pimentel, segundo homem na hierarquia da PF, afastado do cargo sob acusação de ter ido a Fortaleza exonerar o superintendente do Ceará e avisá-lo de que estava sob investigação. 'Fui exonerá-lo em missão oficial, a pedido do diretor, porque ele não estava correspondendo às expectativas da direção. E não conversei nada, nada, nada com ele sobre ele ter sido alvo de investigação. Eu tinha ouvido falar disso, mas só por alto - e não sei de onde podem ter tirado isso', diz.

Mantido na Secretaria de Segurança pelo governador Jaques Wagner (PT), Paulo Fernando Bezerra também aponta motivação política. 'Eles grampearam meu gabinete por meses e me deram parabéns porque não havia nada contra mim. Agora apareço lá nesse relatório. Isso é má-fé, uma coisa deliberada mesmo. Desde que o diretor-geral anunciou que vai sair da PF, começou esse desconforto.' No relatório, Bezerra é acusado de conhecer o empresário baiano Francisco Catelino, pego nos grampos negociando o pagamento de R$ 7 mil de Zuleido Veras para a festa de posse do superintendente da PF em Sergipe, Rubem Patury. 'Vão ter de investigar a Bahia inteira, porque esse homem conhece todo mundo, é um falastrão', diz Bezerra.

O atual superintendente da Bahia, Antonio Cesar Fernandes Nunes, também foi afastado do cargo porque o relatório o acusa de conhecer Francisco Catelino. Apontado como espécie de homem-bomba, Catelino afirma que não pode falar do assunto porque nunca foi informado de que está sendo investigado. E declarou, por e-mail: 'Felizmente, tenho diversos amigos em todos os setores da sociedade, preferindo não os nominar, pois correria o risco de esquecer de alguns.'