Título: Surtos de bom senso
Autor: Kuntz, Rolf
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/05/2007, Economia, p. B2
Podem crer: de vez em quando até a diplomacia petista sai do mundo da fantasia para o terreno dos interesses concretos. Esse raro fenômeno está ocorrendo de novo, com a aproximação entre Brasil e Nigéria. Ocorreu em abril, com os acordos entre o País e o Chile para cooperação na área energética. Lances como esses não bastam para contrabalançar as tolices terceiro-mundistas, como a participação no projeto do Banco do Sul e as alianças 'estratégicas' com parceiros errados. Também por isso vale a pena chamar a atenção para os surtos de sensatez. O acordo entre a Petrobrás e a Nigeria National Petroleum Corporation para a construção de uma usina de álcool é parte de um promissor programa de cooperação e de intercâmbio. O mercado nigeriano interessa à indústria brasileira - já era importante há mais de 20 anos - e há condições para uma boa expansão do comércio. No ano passado, o Brasil exportou US$ 109,4 milhões para a Nigéria e de lá importou US$ 147 milhões. Além de produtos industriais, o Brasil pode oferecer a tecnologia da cana e do etanol. A Nigéria pode tornar o Brasil menos dependente do gás boliviano, além de continuar a fornecer petróleo. O novo presidente nigeriano, Umaru Yar'Adua, mostra interesse em ampliar a cooperação e os dois lados podem trabalhar com base em interesses bem definidos. Há dois dias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recomendou aos empresários maior empenho na disputa de mercados com a China. É preciso, segundo ele, dar atenção especial à África, onde é cada vez mais importante a presença chinesa. O conselho é desnecessário. Os principais obstáculos à exportação brasileira estão dentro das fronteiras nacionais - impostos pesados e de baixa qualidade, complicações burocráticas para investir e assim por diante. Quem tem de mudar é o governo, e uma alteração importante seria a adoção de uma diplomacia mais pragmática. Quanto a isso, a China é um bom exemplo. Os chineses não estão na África para purgar pecados históricos nem para formar uma aliança terceiro-mundista. Investem na África principalmente porque precisam de matérias-primas para sustentar seu crescimento econômico. Em vista disso, não hesitam sequer em estimular o endividamento africano, na contramão da política de alívio patrocinada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelos antigos credores, os grandes países do mundo rico. Essa estratégia foi denunciada no ano passado, em Cingapura, na assembléia anual do FMI. De toda forma, já é uma boa novidade o presidente Lula falar da China como poderosa e temível competidora, depois de haver caído no engano - auto-engano, é preciso lembrar - da aliança 'estratégica'. Em breve ele irá à Índia, mas desta vez com uma pauta de negociação comercial. Também os indianos foram escolhidos, no primeiro mandato petista, como parceiros da imaginária aventura de reforma da economia mundial. Um vice-ministro da Índia encarregou-se de mostrar o engano, ao descrever os dois países, numa entrevista ao Estado, como concorrentes e não como aliados estratégicos. As divergências entre Brasil e Índia nas discussões da Rodada Doha podem ter contribuído, também, para uma visão mais pragmática da relação bilateral. Com maior realismo, essa relação pode tornar-se mais proveitosa para os dois lados. A visita do presidente Lula poderá ser um bom recomeço, se o governo brasileiro levar em conta o ponto de vista empresarial. A viagem do presidente Lula a Santiago, no fim de abril, também foi marcada por um diálogo realista. Falou-se muito sobre etanol, mas também se discutiu a participação da Petrobrás na solução do problema energético chileno. A economia do Chile continua a crescer em ritmo anual superior a 5%, mas essa prosperidade é ameaçada pela escassez de energia. O país importa a maior parte do petróleo necessário e depende da Argentina para o suprimento de gás. Os argentinos, no entanto, têm reduzido o fornecimento, porque também eles enfrentam um quadro de escassez. Nos últimos dias, cortaram até o gás necessário ao uso residencial dos chilenos. A curto prazo, a solução deve ser o abastecimento de gás liquefeito para processamento nas centrais de Quintero, mas o memorando de entendimento entre a Petrobrás e a Enap, a empresa chilena, é mais ambicioso. É uma boa oportunidade para aprofundar a cooperação entre Brasil e Chile, um parceiro pragmático e imune à tentação de bravatas e aventuras de estilo latino.