Título: Como proteger criminosos
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/05/2007, Espaço Aberto, p. A2
A Resolução nº 214 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), em vigor desde segunda-feira, estabelece que todos os aparelhos que fiscalizam excesso de velocidade, fixos ou móveis, devem estar plenamente visíveis e acompanhados de sinalização. Numa proteção deslavada aos criminosos do volante, a medida pretende satisfazer aos que reclamam dos ¿radares escondidos¿, porque, sem vê-los, deles não conseguem escapar - e perdem a liberdade de guiar seus veículos, nas ruas e estradas, na velocidade que bem entendam, matem ou aleijem quantos se lhes cruzem o caminho.
Sendo impossível (ainda) ter-se a cobertura de radar ao longo de todas as estradas e ruas das cidades, é preciso tirar o melhor proveito da fiscalização com número limitado de radares. Então, deve-se ter um componente aleatório, no sentido de se convencer o motorista a não ultrapassar a velocidade permitida e a não se arriscar a ser punido quando menos esperar, já que não sabe ao certo onde estão os radares. Pois, se tiver certeza de que determinado trecho de rua ou estrada não tem fiscalização, o motorista poderá nele desenvolver a velocidade que bem entender, de forma impunível.
A fiscalização da observância legal, em defesa da sociedade, tem de ter eficácia simultaneamente educativa e punitiva. Só os administradores irresponsáveis podem vislumbrar nessa ação fiscalizadora um simples manancial de arrecadação - e estes devem merecer o mais enérgico repúdio político da sociedade, justamente porque desqualificam o valor educativo da punição. É claro que campanhas efetivamente educativas, no trânsito, podem surtir muito bom efeito - especialmente se acopladas à responsabilização dos infratores, para que estes não sintam a educação como uma descabida alternativa à obediência legal.
Era muito comum no Brasil - felizmente, já não o é, pelo menos nas estradas de São Paulo - a estranha cumplicidade que levava o motorista a dar sinal de luz a um desconhecido que vinha em sentido contrário, para alertá-lo da presença da polícia - no que poderia estar poupando da punição um verdadeiro assassino sobre rodas. Hoje é até mais provável que se ligue para a polícia para que esta flagre, adiante na rodovia, um irresponsável ao volante - com isso podendo-se salvar vidas. É que já há, em nosso país, a consciência de que a impunidade é um mal que afeta a vida de todos. Neste sentido, a nova resolução do Contran é tremendamente retrógrada, por livrar os infratores do medo da punição.
Só uma inversão brutal de valores leva a que se faça crítica veemente aos ¿radares escondidos¿, como se significassem uma traição aos condutores de veículos, ou ferissem direitos inerentes à cidadania. Essa absurda indignação equivale à dos políticos que ficaram furiosos por não terem sido alertados da execução de mandados de busca e apreensão em seus escritórios - que resultaram na descoberta de dinheirama sem origem. Trata-se do pretenso ¿direito¿ de não ser pego com a mão na botija.
Motoristas entrevistados nos telejornais louvam a ¿justiça¿ dessa resolução, que acabou com as multas ¿inesperadas¿. Esquecem-se eles de que só há multa se há infração - afora os fiscais cooptados pela bandidagem, que de forma alguma são a regra. É que, no clima de cinismo geral em voga, infratores parecem ter perdido a noção da conexão entre a punição e a infração cometida. Eles apenas lamentam e se revoltam por não terem tido a chance de ¿cumprir a lei¿ - e livrar-se de multas - nos locais onde há fiscalização por radar. É esse tipo de ¿vitimização¿, dos coitados infratores - que se sentem punidos ¿injustamente¿ por não terem visto o radar ¿escondido¿, embora tenham desrespeitado flagrantemente a lei -, o que é mais estimulado pela parvoíce dessa resolução.
Com seus 40 mil mortos e 350 mil feridos anuais, o Brasil permanece, há muito tempo, no topo do ranking mundial de mortos e inválidos produzidos pelos acidentes de trânsito. Desde que foram instalados há dez anos, os radares fixos na cidade de São Paulo - que receberam tantas críticas por estarem ¿escondidos¿ pelas árvores, não serem sinalizados e tudo o mais - reduziram em 27% o número de mortes em acidentes de trânsito. Quer dizer, milhares de vidas foram salvas pelos ¿escondidos¿. Quantas vidas serão burramente perdidas, agora, em razão dos radares ¿transparentes¿, bem visíveis e sinalizados, para que os criminosos do volante não sejam ¿traídos¿ por multas indesejadas?
Atropelamentos têm dizimado famílias inteiras. Na recente tragédia de Jarinu, na região de Jundiaí, a mãe (Ana Lúcia Silva, de 39 anos) e suas seis filhas retornavam, à noite, de um ofício religioso, andando pelo acostamento de uma rodovia, quando foram atropeladas por um Mitsubishi Space Wagon, dirigido em alta velocidade e com os faróis apagados - segundo as duas sobreviventes - pelo empresário Marcelo Spader Monteiro de Farias (34 anos). Morreram a mãe e suas filhas Daniele (20 anos), Suellen (13 anos), Caroline (9 anos) e Ester Silva (6 anos). Escaparam apenas Ana Jéssica (15 anos) e Andressa (11 anos). ¿Ele me viu segurando o braço e pulando numa perna só. Viu que eu estava chamando ele, mas fechou o vidro e foi embora¿, contou Jéssica ao descrever a omissão de socorro e fuga do motorista, que só se apresentou à policia três dias depois, com quatro advogados, escapando do flagrante e permanecendo em tranqüila liberdade, embora já tivesse passagens pela polícia, inclusive por infrações no trânsito.
Será que a idéia do Contran é evitar que exterminadores do futuro alheio, como esse, se constranjam em receber multas provenientes de ¿radares escondidos¿?