Título: Estado, sociedade e liberdade
Autor: Castro, Reginaldo de
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Legislar é simultaneamente estabelecer e restringir direitos. O benefício que se concede a um impõe a alguém ou a alguma instância institucional o dever de provê-lo. Ao proibir alguma coisa, a lei limita a ação de um segmento social, em nome do interesse de outro.

A lei, qualquer lei, é sempre a expressão deste paradoxo intrínseco e inapelável: restringe a liberdade, mas, de outra parte, é a sua única fonte de garantia e sustentação. Sem lei a liberdade seria o vale-tudo selvagem do tempo das cavernas, em que prevalecia a lógica do mais forte. Seria a negação do marco civilizatório.

O Estado Democrático de Direito é o ambiente jurídico no qual esse paradoxo se exerce em saudável plenitude. Daí a complexidade inerente a temas como liberdade de expressão e liberdade de criação artística. Eles estão submetidos a essa natureza da lei. Por mais que se proclame a excelência do valor humano e moral da liberdade - e a Constituição federal do Brasil, de 1988, é das mais avançadas do planeta quanto a isso -, não há como escapar às ciladas que o tema oferece.

Embora a Carta de 88 garanta plena liberdade de expressão, vede que se legisle contra esse fundamento e estabeleça que seu exercício não depende de licença do Estado, o tema volta sempre ao debate. Agora, por exemplo, o faz por meio de portarias do Ministério da Justiça, empenhado em regulamentar direitos da infância e juventude expressos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A intenção proclama-se boa, mas de boas intenções, sabemos todos, o inferno está cheio. As referidas portarias pretendem estabelecer critérios classificatórios para a exibição de programas na televisão. Mas, nos termos da Lei Maior, o Estado não tem poderes coercitivos em matéria de liberdade de expressão.

No caso específico da televisão, a Constituição (artigo 21, inciso XVI) diz que o Estado pode indicar uma classificação, mas não pode impô-la. E o constituinte, quanto a isso, foi sábio. Se o critério de classificação de programas, a pretexto de aferir aspectos de ordem moral e comportamental, é subjetivo - e não há dúvidas de que é -, não cabe ao Estado, instância objetiva de gestão de interesses difusos e coletivos, o papel de árbitro.

Esse papel é da própria sociedade. E é intransferível.

Historicamente, sabemos de sobra que, sempre que o Estado decide agir em questões subjetivas, prevalece a visão tirânica de pequenos grupos de interesses, em regra, escusos. A vítima, nesse caso, é sempre a liberdade - e com ela o ser humano.

Se o Estatuto da Criança e do Adolescente tipifica como infração legal a exibição de programas de TV fora do horário classificado como adequado pelo Estado, está em desacordo com a Constituição federal. É, portanto, no mínimo, de constitucionalidade duvidosa e, como tal, não pode prevalecer. O artigo 5º, inciso IX, da Carta Magna não deixa dúvida: ¿É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.¿

O artigo 220 reforça esse fundamento, ao determinar que ¿a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição¿.

Diz mais, em seu parágrafo primeiro: ¿Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observando o disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.¿ E reforça no parágrafo segundo: ¿É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.¿

Do ponto de vista jurídico, não há o que discutir. As portarias do Ministério da Justiça são inconstitucionais, não tendo, portanto, nenhum efeito legal. Não significa, porém, que, na eventualidade de exibição de programação que constitua afronta a valores éticos e sociais, não haja nada a fazer. Há, sim.

Mas são os que se sentem afrontados - a própria sociedade - que devem recorrer à instância judiciária para a devida reparação. Como foi dito, liberdade não é um bem sem limites. Seu limite é a lei. E a lei garante a preservação de direitos, a reparação de danos.

Agora mesmo, o cantor Roberto Carlos garantiu a proibição de um livro com sua biografia por considerá-lo ofensivo à sua privacidade. Sem entrar no mérito da decisão judicial, estabelecido por acordo entre as partes, registre-se que se baseou na lei.

Portanto, em meio ao cipoal de direitos constitucionais que sustentam a liberdade de expressão, repita-se, sem fazer nenhum juízo de valor quanto ao mérito da questão, foi possível tirar de circulação, de maneira legal, um livro. Mas a iniciativa não foi, nem poderia ser, do Estado. Foi do cidadão que se sentiu lesado. E o que fez, nos termos do que determina o Estado Democrático de Direito, foi responsabilizar o ofensor, na forma do devido processo legal.

O caminho é esse. A sociedade civil brasileira, hoje bem mais organizada do que ao tempo em que a Constituição foi promulgada, está em condições de tomar as rédeas de seu próprio destino e decidir o que considera adequado ou não para si.

Se a cidadania brasileira ainda não é plenamente dotada de critérios e de maturidade para educar-se a si e a seus filhos - e é possível que não seja -, não há dúvidas, porém, de que o Estado o é menos ainda. E quanto mais queira impor-se em questões que não lhe dizem respeito, mais há de retardar o aprimoramento ético e moral da sociedade brasileira.