Título: Reformas da natureza
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2007, Economia, p. B2

Continuam a surgir propostas para 'resolver os problemas relacionados à sobrevalorização do real'. Os argumentos de que mesmo substancial redução das taxas de juros não teria efeitos significativos sobre a taxa cambial e poderia afetar a inflação têm sido enfrentados por argumentos bastante precários. Talvez por isso haja recurso tão difundido a imprecações explosivas dos estafetas usuais e de especialistas em assimetrias hepáticas e efeitos especiais, firmemente ancorados na defesa do que a literatura econômica chama, quase eufemisticamente, de 'interesses especiais'.

Em reconhecimento implícito da precariedade do argumento centrado na importância da política de juros para frear a apreciação cambial, têm surgido propostas que têm como alvo os fluxos comerciais. Diversos analistas propuseram a redução de tarifas de importação. Isso estimularia o aumento de importações, teria efeitos benéficos sobre a inflação, abrindo espaço para afrouxar a política monetária, e reduziria o custo do investimento. É proposta que deveria ser considerada pelo governo. Mas não é que surgem pretensos especialistas tentando afundá-la liminarmente? Argumentam que, em meio às negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), tal decisão seria lesiva aos interesses nacionais. Além disso, há a Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul, que seria impedimento a qualquer ajuste tarifário. Os dois argumentos são muito fracos. As reduções tarifárias que podem ocorrer na Rodada Doha tomam por base as tarifas consolidadas, ou seja, o nível tarifário máximo que o Brasil deve respeitar de acordo com a Rodada Uruguai. Isso, aliás, foi pleito da diplomacia brasileira. As tarifas que o Brasil efetivamente aplica estão, para muitos produtos, bem abaixo dos níveis consolidados. Quanto à Tarifa Externa Comum, há espaço para reduções convergindo para os níveis tarifários mais baixos, que são aplicados por nossos parceiros especialmente a bens de capital. Houve recentemente a decisão brasileira de aumentar as tarifas sobre vestuário e calçados, acompanhando exceções à TEC já praticadas pela Argentina. Por que não, para variar, acompanhar as tarifas argentinas, que são menores do que as brasileiras, por exemplo, sobre bens de capital? Os problemas relacionados a uma eventual redução tarifária decorreriam de aspectos redistributivos e o governo deveria introduzir programas de realocação do uso de fatores de produção deslocados pelos níveis tarifários reduzidos.

Outras propostas para atenuar as conseqüências da apreciação cambial têm como alvo as exportações. Os exportadores brasileiros de commodities mais eficientes seriam taxados. Os exemplos a serem copiados seriam o Chile e a Noruega, exportadores de cobre e petróleo. Os alvos no Brasil são as exportações agrícolas e de minérios. Não interessa se, no caso de produtos agrícolas, não há participações no mercado remotamente equivalentes às das grandes exportadoras de cobre e petróleo. Não interessa se posições dominantes são ocupadas por empresas estatais, a Codelco, no Chile, e a Statoil, na Noruega.

A mais recente e 'engenhosa' proposta de 'fine tuning' na remuneração dos exportadores, em retrocesso portentoso, sugere um imposto de exportação variável de acordo com a divergência entre a taxa de câmbio corrente e a taxa de câmbio de 'equilíbrio' - que seria a 'taxa que viabiliza indústrias no estado da arte da tecnologia' (sic) -, envolvendo uma divisão de ganhos entre governo e exportadores nos tempos de boom.

Quando caírem os preços de commodities e as exportações ficarem 'gravosas', isto é, seus custos de produção excederem as receitas, o governo utilizaria os recursos acumulados na bonança para compensar os exportadores. A sapiência intervencionista estaria limitada à remuneração dos exportadores. Nem um pio sequer sobre produtos que competem com importações. Aliás, a taxa de câmbio rondou os R$ 4 por dólar e nada se ouviu sobre tarifas variáveis de importação.

Nesses mesmos arraiais vicejou, pelo menos até recentemente, grande interesse na adoção do modelo argentino, com a sua combinação de default, câmbio 'certo', alto crescimento, taxas de importação e flexibilidade no tratamento da inflação. O contraste era com um Brasil bobo, que honrava os seus compromissos e era desprovido de inventividade. Agora, com o gato começando a subir no telhado na Argentina, com aceleração inflacionária, falsificações de índices de preços, apagões e colapso da infra-estrutura, o entusiasmo neoperonista parece ter arrefecido e dado lugar a outras propostas.

Em contexto em que a noção de produto 'gravoso' - cunhada nos anos 1940 para as exportações penalizadas por taxa cambial grotescamente sobrevalorizada - é ressuscitada, é o caso de citar o contemporâneo Monteiro Lobato. Em A Reforma da Natureza, de 1939, a boneca Emília introduz uma série de reformas desastradas, que incluem, entre outras, o livro comestível, abóboras em jabuticabeira e jabuticabas em pés de abóbora. Por que será que a Emília não propôs o imposto variável sobre exportações? É lamentável que o recrudescimento da defesa de 'interesses especiais' tenha chegado à difusão de idéias tão estapafúrdias.