Título: Chávez busca monopolizar mídia
Autor: Costas, Ruth
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2007, Internacional, p. A20

Caracas - A decisão que na semana passada acabou com as transmissões da Rádio Caracas Televisão (RCTV), a emissora mais popular da Venezuela, causou a revolta de boa parte dos venezuelanos, mas não chegou a ser uma surpresa. Há pelo menos cinco anos, o presidente Hugo Chávez está empenhado em construir um império da mídia estatal e criar mecanismos que reduzam o espaço ocupado pelos meios de comunicação privados. O líder venezuelano controla hoje seis emissoras de TV (incluindo a TVes, que substituiu a RCTV), oito estações de rádio, uma agência de notícias, centenas de sites e a maior provedora de internet do país - a Cantv, cujo processo de reestatização foi oficializado há três semanas. Além disso, Chávez tem o apoio de dezenas de jornais, patrocina mais de 150 rádios e 28 televisões comunitárias e assinou um contrato com a China para colocar em órbita um satélite que aumentará sua cobertura sobre o território nacional.

'O governo não se esforça muito para esconder que sua meta é ter o controle total dos meios de comunicação e reduzir os espaços para a crítica', disse ao Estado o cientista político Omar Noria, da Universidade Simón Bolívar. 'A má repercussão do caso da RCTV na comunidade internacional e a reação que ele provocou internamente levam a crer que tirar a emissora do ar foi um erro tático no que até agora havia sido uma bem-sucedida e silenciosa estratégia para controlar a mídia.'

A data que marca o início da guerra entre Chávez e os meios de comunicação privados é abril de 2002, quando um golpe afastou o presidente do poder por 48 horas. Algumas emissoras - entre elas a RCTV - incitaram os venezuelanos a irem às ruas para apoiar o movimento insurgente e, enquanto as forças leais ao governo reagiam, colocaram no ar apenas desenhos animados. O episódio convenceu o presidente de que as TVs, rádios e jornais estavam entre seus maiores inimigos e se ele quisesse se manter no poder, precisaria construir uma rede de veículos de informação estatal que contasse a sua versão dos fatos.

Os investimentos para revitalizar a emissora estatal Venezolana de Televisão (VTV), no ano seguinte, consumiram quase US$ 100 milhões e fizeram a audiência subir para 10% (a maior entre as estatais, mas ainda 4 pontos porcentuais abaixo da Globovisión, o canal de notícias que não poupa críticas ao governo).

Foram instalados mais transmissores para aumentar a cobertura para quase 80% do território nacional e comprados equipamentos de tecnologia digital. Hoje, o destaque da emissora são os noticiários e programas de opinião, alguns tão ou mais virulentos que os das televisões opositoras, que, a bem da verdade, também estão longe de primar por qualquer neutralidade. Em um deles, chamado La Hojilla, um apresentador 'desmascara' uma a uma as notícias dos jornais e emissoras opositoras num cenário feito de retratos de Chávez, Fidel Castro, Che Guevara e Simón Bolívar.

Recuperada a VTV, os passos seguintes foram fomentar a criação de rádios e televisões comunitárias por todo o país, investir numa agência de notícias chavista e lançar as emissoras Vive TV e Telesur, cujo presidente, Andrés Izarra, defende 'uma hegemonia comunicacional para implementar o socialismo'.

'Nunca na história da Venezuela um governo havia controlado tantos veículos de informação como hoje', disse ao Estado Marcelino Bisbal, diretor de pós-graduação em Comunicação da Universidade Católica Andrés Bello.

Segundo o ministro das Comunicações, Willian Lara, o objetivo da criação de tantas rádios e TVs é 'socializar os meios de comunicação', fazendo com que a população possa se expressar e se ver refletida nos programas transmitidos por eles. No entanto, chama a atenção a quantidade de propaganda do governo nesses canais e o fato de não oferecerem espaço para opiniões dissidentes, quando 40% dos venezuelanos não votaram em Chávez nas últimas eleições presidenciais.

Muito mais difíceis de justificar, as estratégias para sufocar a imprensa crítica ao governo foram aplicadas paralelamente ao processo para agigantar a participação do Estado no setor e lançaram mão de quatro instrumentos principais: uma nova legislação, as licenças necessárias para se utilizar o espectro radioelétrico venezuelano, ameaças abertas e devassas fiscais das empresas de comunicações.

No que diz respeito à legislação, um dos grandes marcos foi a reforma no Código Penal, que, em março de 2005, aumentou as multas e sanções para os 'delitos de opinião', como difamar ou injuriar membros do governo. A partir de então, a punição prevista para quem ofende o presidente, por exemplo, passou a ser de mais de três anos de prisão. No mesmo ano, foi aprovada a Lei de Responsabilidade no Rádio e na TV (Lei Resorte), criando regras tão amplas e ambíguas que na prática permitem ao governo determinar arbitrariamente o que vai ou não ao ar. 'As TVs estatais também não conseguiriam se enquadrar em todas as categorias e normas estabelecidas pela nova lei, mas só as privadas são ameaçadas com processos na Justiça, que poderiam levar à suspensão de suas concessões', disse ao Estado o especialista em meios de comunicações, Andrés Cañizáles.

No ambiente criado pela nova lei, foram neutralizados veículos que no passado eram críticos, como a Venevisión, do magnata Gustavo Cisneros, e mais de 50% dos programas de opinião da TV aberta foram tirados do ar. As únicas que se mantiveram na oposição foram a RCTV, de alcance nacional, e a Globovisión, limitada a Caracas e redondezas, e todas as TVs foram obrigadas a transmitir publicidade do governo gratuitamente.

A não renovação da licença, como ocorreu com a RCTV, é o mecanismo mais simples para pôr nos eixos as rádios e TVs que vez ou outra ainda caem na tentação de criticar o governo. No caso da RCTV, a justificativa era a de que os seus diretores eram golpista e não cumpriram com seus compromissos legais e fiscais, mas a lista de supostas infrações pode variar muito. 'Se o governo quiser nos tirar do ar, sem dúvida vai encontrar algum modo de fazê-lo', disse ao Estado Sheina Chanj, repórter e âncora da Globovisión.

Hoje, cerca de 150 rádios AM estão na expectativa de que o governo tome uma decisão sobre a sua permissão para operar na Venezuela. Segundo o ministro das Telecomunicações, Jesse Chacón, mesmo que elas consigam o aval, as concessões terão um horizonte muito mais curto - de apenas 5 anos, contra 20 anos do passado. 'O objetivo é estimular a autocensura, lembrando às emissoras que elas deverão passar pelo crivo do governo em breve', explica Noria, da Universidade Simon Bolívar.

As ameaças feitas por Chávez e seus ministros às rádios e TVs, terceiro mecanismo de controle da mídia, muitas vezes incluem um lembrete desse prazo. 'Se vocês não abaixarem o tom, terei de freá-los', disse Chávez na terça-feira, dirigindo-se à Globovisión. No dia seguinte, o Ministério Público convocou o presidente da emissora, Alfredo Ravell, e o apresentador Leopoldo Castillo para prestar depoimento pois, segundo especialistas em semiótica, eles teriam tentado incitar o assassinato do presidente passando mensagens subliminares durante um programa.

'São acusações que beiram o insólito', disse ao Estado Carlos Correa, diretor da organização Espaço Público, que monitora os ataques contra a imprensa na Venezuela. Para ele, o fato de as contas das empresas de comunicação serem reviradas em busca de quaisquer irregularidades não seria um problema não fosse o contexto nos quais essas devassas fiscais são anunciadas. Ocorre que Chávez costuma ordenar que sejam feitas inspeções nas empresas durante suas declarações na TV, logo após criticar aspectos da cobertura e da linha editorial desses veículos. 'Dessa forma, ele mesmo deixa claro que esse não é um mecanismo para melhorar a arrecadação fiscal, mas um instrumento de repressão', diz Correa.

Para completar, as condições de trabalho estão ficando cada vez mais perigosas para os jornalistas venezuelanos - incluindo os das TVs estatais, hostilizados nas manifestações pró-RCTV da semana passada. Não raro os repórteres e cinegrafistas são agredidos nas ruas. A oposição acusa o governo de apoiar os agressores. Nenhuma denúncia foi comprovada. 'O que existe, sem dúvida, é uma estranha tolerância com relação aos agressores', diz Correa. 'Com certeza, isso não ajuda a criar um ambiente propício para a pluralidade e debate de idéias na Venezuela.'