Título: Os dois futuros diante da Europa
Autor: Fischer, Joschka
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2007, Internacional, p. A24

A Europa apresenta hoje um quadro contraditório. É uma terra de paz, democracia e respeito à lei. É também uma terra de prosperidade: sua economia é competitiva, sua moeda é forte, a inflação é baixa e seus padrões de vida estão entre os mais altos do mundo. Os europeus são beneficiados por altos níveis de proteção social, educação barata e de alta qualidade, padrões ambientais rigorosos e infra-estrutura excelente. Além disso, a Europa possui diversidade cultural incomparável e grande beleza natural. Tudo lembra um sonho utópico.

Com seus 500 milhões de habitantes e o maior mercado único do planeta, a Europa, mesmo que não seja vista pelo mundo como uma verdadeira união, ainda é uma gigante econômica. Politicamente, contudo, ela é uma anã - e está encolhendo. Nosso século é um século de Estados grandes - e a continuação da ascensão da China, Índia, Estados Unidos e Japão logo fará as maiores potências européias parecerem insignificantes. Mesmo hoje, os três maiores membros da União Européia (UE) mal conseguem compensar a perda de peso político da Europa, e muito menos reverter a tendência. Sem uma UE forte, esse movimento só vai intensificar-se.

O mundo exterior à Europa muda rapidamente - e não vai esperar pelos europeus atolados num agonizante processo de autodescoberta. As alternativas são claras: acompanhar ou ficar para trás.

Nos Estados Unidos, apesar da atual obsessão com o Iraque, consolida-se uma visão estratégica que define o século 21 principalmente nos termos da tríade China, Índia e EUA. O papel do Japão como um aliado dos americanos é considerado um fato consumado. A relação com a Rússia é situada em algum lugar entre a parceria e a rivalidade renovada, mas a Rússia não é realmente vista como um desafio estratégico. E, em termos estratégicos, o resto é silêncio - o que se aplica também à Europa.

O que importa para os EUA é que a Europa, embora não esteja criando mais problemas, também não vai se dispor a - ou não será capaz de - contribuir para resolver os problemas do mundo no futuro previsível, por causa de sua falta de unidade. O envolvimento da Europa nos esforços da Otan para estabilizar o Afeganistão só sublinha essa ambigüidade.

Por um lado, o papel da Europa no Afeganistão é apreciado pelos EUA; por outro, expõe a fraqueza dos europeus e a capacidade limitada da aliança. Embora a elite política americana não tenha descartado a Otan, as expectativas sobre sua competência na solução de crises são rapidamente rebaixadas. Esta visão da Europa como uma entidade política desprezível é totalmente compartilhada em Pequim, Moscou e Nova Délhi.

É neste momento que uma nova geração de líderes assume as rédeas nos três maiores Estados membros da UE. Gerhard Schroeder, Jacques Chirac e Tony Blair já pertencem ao passado. Na Alemanha, o governo de Angela Merkel está no poder há um ano e meio. Nicolas Sarkozy acaba de assumir a presidência da França. Gordon Brown tomará posse em breve como primeiro-ministro da Grã-Bretanha.

Dentro de poucas semanas, esse trio será chamado a tomar uma decisão vital sobre o futuro da UE. A decisão envolve o Tratado Constitucional e suas perspectivas. Não importa como o novo documento será chamado; o essencial para o futuro da Europa é que a reforma constitucional seja reativada e dê ao continente uma fundação forte. A questão, portanto, é se os novos líderes conseguirão, já neste mês, ter sucesso num novo esforço para adotar as reformas institucionais vitais que a união ampliada exige.

A melhor maneira de proceder é concentrar-se nos pontos essenciais. A Parte III do bloqueado Tratado Constitucional é um mero compêndio dos tratados da UE existentes, que podem ser separados do restante, pois permanecerão em vigor, sejam ou não parte do novo documento.

A Parte II do documento, a Carta dos Direitos Fundamentais, pode ser adiada. Isto será doloroso, sem dúvida - pois, à medida que as burocracias da UE ganharem mais autoridade, o déficit democrático do bloco aumentará na ausência de direitos fundamentais claramente definidos. Se a Parte II for adiada, a Corte Européia terá de definir esses direitos fundamentais provisoriamente. Não é a melhor solução, mas é melhor que nenhuma.

A Parte I do tratado, no entanto, é indispensável, assim como o novo procedimento de votação, com sua regra da 'dupla maioria' equilibrando o papel dos Estados e da população. Reabrir essa parte do debate, permitindo assim uma diluição de sua substância, seria um fracasso histórico e um grande revés para o futuro da Europa. Se este é o preço para o avanço do tratado, é melhor não fazer nada e esperar o momento adequado.

Por isso, as próximas semanas serão decisivas para a Europa. Se a substância do Tratado Constitucional for salva, a Europa se desenvolverá cada vez mais como um ator global. Só então a aliança transatlântica também terá um futuro. Sem dúvida, este processo levará tempo e outros obstáculos surgirão. Mas a direção fundamental estará certa e haverá motivos reais para otimismo. Por outro lado, se essa tentativa também falhar, ou acabar num acordo desinteressado e inútil, o declínio da Europa se precipitará e as relações transatlânticas ficarão cada vez mais turbulentas.

Cabe agora a Merkel, Sarkozy e Brown provar - apesar de todas as possíveis diferenças entre eles - que compreendem os desafios apresentados à Europa pela globalização: os Estados membros da UE só serão capazes de defender seus interesses no mundo do século 21 se o próprio bloco tiver força. TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA

Joschka Fischer foi ministro do Exterior e vice-chanceler da Alemanha de 1998 a 2005. Líder do Partido Verde por quase 20 anos, é hoje professor visitante da Escola Woodrow Wilson da Universidade de Princeton. Artigo escrito para o Project Syndicate.