Título: Poluição ameaça o futuro da China
Autor: Gandour, Ricardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2007, Internacional, p. A26

Em dias de mái, o sol brilha fraco em Tang Paradise, e o céu não é azul, mesmo num domingo ao meio-dia e sem nuvens. Construído em homenagem à Dinastia Tang (618-907), símbolo de prosperidade e excelência, o belíssimo complexo de lazer fica na cidade de Xian, centro-norte da China. Ali, como em diversas partes do país, volta e meia tem mái: uma névoa espessa que torna os dias mal iluminados e cinzentos.

O fenômeno ocorre da futurista Xangai à tradicional capital, Pequim. E tem se tornado tão freqüente que nos últimos anos surgiu no cotidiano a palavra mái, ideograma que combina os símbolos de 'nuvem' e 'animal' e na boca do povo quer dizer 'poeira ruim'. Mais do que apropriado para designar a mistura de fumaça, poeira, gases e elementos químicos em suspensão que varre boa parte dos 9,5 milhões de quilômetros quadrados do país e cujos efeitos, registrados em fotos no site da Nasa, já chegaram a atravessar o Oceano Pacífico e foram sentidos na costa da Califórnia.

A China, a maior fábrica e o maior canteiro de obras do mundo, enfrenta, na corrida pelo crescimento econômico, um gigantesco desafio: o impacto ambiental. A China está poluindo demais o ar, a água e o solo.

A questão ambiental chinesa ganhou na semana passada um dado alarmante. Estudo divulgado pela Academia Chinesa de Ciências Médicas revelou que o câncer, turbinado pela poluição, acaba de assumir a liderança no ranking de motivos de morte no país. 'A principal razão é a poluição da água e do ar, pior dia após dia', disse o médico e cientista Chen Zhizhou.

O governo tem lidado abertamente com a questão. O ministro da Informação, Cai Wu, vai direto ao ponto: 'Temos severos problemas com poluição do ar, água e solo. Nossas empresas poluem demais', disse Cai em entrevista na semana passada (leia na página seguinte).

No ar, pairam gases, poeira, fumaça e principalmente a substância formaldeído e seus derivados, usados na construção civil. As partículas sólidas penetram irreversivelmente nos pulmões, conforme o estudo divulgado por Chen e publicado no jornal estatal China Daily. 'Muitas indústrias lançam resíduos nos rios. E o uso excessivo de fertilizantes e pesticidas contamina os lençóis freáticos', acrescentou. Passar longe da água da torneira, mesmo tratada, é uma recomendação feita pelos guias turísticos. Até gelo eles recomendam evitar.

A situação piora bastante quando ocorrem as já familiares tempestades de areia, parte integrante do cotidiano e das previsões meteorológicas. Não é difícil encontrar um cidadão de Pequim que explique que as sandstorms vêm com os fortes ventos que sopram da Mongólia, ao norte do país, arrastando a poeira gerada pelos crescentes desmatamentos. É o caso da guia e intérprete Olívia Duan, 22 anos, que mora com os pais em Pequim. Olivia não menciona onde obteve essa informação, mas o fenômeno é citado no livro China S.A, de Ted Fishman, publicado em 2005.

Outro estudo divulgado na semana passada em Pequim mostrou o comprometimento da água do mar. A análise realizada em 75 estações de medição em 13 cidades litorâneas acusou a presença de arsênico, mercúrio, cádmio e cobre, entre outros metais e poluentes.

A pesquisa do dr. Chen foi feita em 30 cidades e 78 condados. Mas, além das estatísticas, basta andar e observar o batalhão de guindastes e gruas trabalhando 24 horas por dia e 7 dias por semana, demolindo prédios velhos e sujos e abrindo terrenos para megaconjuntos residenciais e empresariais.

Num movimento gigantesco de urbanização, cuja magnitude e velocidade não têm precedentes na história, a China busca incessantemente construir infra-estrutura e fazer a economia girar para acomodar os mais de 100 milhões de trabalhadores rurais em processo de migração interna, nas estatísticas oficiais - analistas ocidentais falam em números maiores. Para isso, precisa construir todos os meses infra-estrutura equivalente a Houston, cidade americana com 2 milhões de habitantes, segundo estudo de Fishman.

Além da pressão do movimento migratório e de urbanização, que aumenta a demanda por quase tudo, Pequim se prepara para sediar, em 2008, a 29ª Olimpíada - o que quer dizer mais obras.

Em Xangai, dezenas de construções velhas à margem do Rio Huangpu estão vindo abaixo para abrir um terreno de 6 quilômetros quadrados, onde já se batem as estacas do megacomplexo que vai sediar a Feira Mundial em 2010 (leia na pág. 27). Segundo o governo, as atuais 5 linhas de metrô de Xangai vão virar 11 até 2010, o que equivale a construir 200 novas estações.

O debate sobre o meio ambiente é aberto e cada vez mais freqüente na China - ótimo sinal num país ainda com muito a avançar em termos de liberdade de expressão. Mas há uma descoordenação entre os níveis de governo. Fortalecidos após as reformas de Deng Xiaoping (1904-1997) - que a partir de 1978 tirou a China dos anos traumáticos da Revolução Cultural (1966-1976) de Mao Tsé-tung (1893-1976) e iniciou a abertura da economia -, os comandos locais nem sempre obedecem ao governo central.

Numa economia planejada, com planos e metas definidos anualmente pelo Partido Comunista Chinês e ratificados pela Assembléia do Povo, há um alinhamento geral de objetivos, mas o governo aponta falhas na execução. 'Alguns distritos e condados, para cumprir suas metas de desenvolvimento, não cumprem diretrizes centrais ligadas à qualidade e eficiência de projetos', disse ao Estado um graduado funcionário do governo central. 'Pelo interior, tem muita usina a carvão que precisa ser urgentemente modernizada ou fechar, tamanha a poluição.' E completa: 'A questão ambiental está parando no discurso do governo central.'

No dia 15 de maio, um grupo de moradores se mobilizou para interromper a demolição de uma vila hutong (pequenas residências formando corredores) da Dinastia Ming (1271-1368), obra autorizada pelo distrito local para dar lugar a um conjunto comercial. A área, em Pequim, é declarada de preservação pelo governo da província. O caso foi motivo de irados editoriais nos jornais.

Mesmo o governo querendo - e discursando -, a China não tem conseguido mostrar que é capaz de desacelerar seu crescimento, alavanca do risco ambiental que hoje assola o país asiático. Em 2006, não cumpriu as metas de redução de consumo de energia, baseadas num índice, associado ao PIB, de 4% - ficou em apenas 1,2%. E na redução da emissão de gases nocivos, ficou longe da meta estabelecida, 2%. Em março deste ano, quando esses números vieram a público, o primeiro-ministro Wen Jiabao apontou o 'descaso das autoridades locais' como a principal causa.

No consumo de carvão, outra frustração. Divulgadas pela primeira vez também em março, as estatísticas do setor mostram que a China consumiu 2,5 bilhões de toneladas de carvão em 2006, 9,3% acima do consumo de 2005. A meta de redução, de 4%, ficou longe.

Na Província de Shaanxi, demolições de dezenas de casas e fábricas antigas estão abrindo espaço a um campus de 60 quilômetros quadrados para abrigar a Cidade da Aviação, um cluster para atrair empresas e joint ventures do setor de engenharia de aeronaves e que tem como meta suprir até 30% da crescente demanda por aviões para uso doméstico nos próximos dez anos. Seria uma excelente oportunidade para tocar no assunto sustentabilidade - mas a apresentação do projeto não aborda o tema.

Um dos principais motores desse 'mau' desempenho - no aspecto ambiental - , a construção civil segue crescendo a dois dígitos. Na semana passada o governo divulgou que, de janeiro a abril, o investimento no setor cresceu 27,4% em relação ao mesmo período do ano passado. As vendas de imóveis ao comprador final subiram 15,5%. Os números saíram na semana em que o esqueleto do Xangai World Financial Center atingiu 400 metros e o 91º andar. Quando pronto, em setembro, o prédio terá 101 andares e será o mais alto da China.

Há iniciativas que saem do discurso e viram realidade. O Estado visitou uma bem-sucedida vila rural que produz alimentos orgânicos, livres de agrotóxicos. Localizada no condado de Xyaniang, Província de Shaanxi, antes uma área militar e considerada o berço da agricultura chinesa moderna, a vila de 2.063 habitantes produz milho, tomate e outras hortaliças irrigadas. O setor de alimentos orgânicos chinês planeja crescer 30% este ano, segundo dados do governo.

Na semana passada, a empresa China Power International anunciou um investimento de US$ 4 bilhões, até 2010, em projetos de energia renovável, o que inclui usinas eólicas e solares. A China é o segundo consumidor mundial de energia, atrás apenas dos Estados Unidos. A prefeitura de Pequim anunciou planos de incentivo fiscal para estimular empresas a instalar-se em distritos satélites, como forma de conter a deterioração do trânsito na capital. E acordos de cooperação nas áreas de energia limpa e de redução de emissão de gases estiveram na pauta da visita da vice-premiê Wu Yi aos EUA, dia 23 de maio.

O ministro Cai bate na tecla de que o problema da poluição não é de hoje, nem é só da China: 'O impacto ambiental vem de dois séculos de industrialização. Os países desenvolvidos têm de assumir sua responsabilidade, usar sua tecnologia para ajudar os países em desenvolvimento.' Cai ecoa a discussão que ocorreu em abril no Conselho de Segurança da ONU - uma espécie de batata-quente acerca da responsabilidade pelo aquecimento global - e na semana passada foi tema de contundente editorial no mais importante jornal chinês, o Diário do Povo, reproduzido em inglês no site do periódico.

O que impressiona o mundo é o impacto gerado pelo movimento de uma sociedade daquele tamanho - 1,4 bilhão de habitantes, ou cerca de 20% da população mundial - em sua busca por infra-estrutura para poder crescer e sustentar-se. Mas como compatibilizar o processo de crescimento com seus efeitos colaterais num país em que, numa vila a 30 minutos da futurista Xangai, ainda se lava louça e roupa na água dos rios?

O professor Jiang Lin, atualmente trabalhando na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA), comenta, em artigo recente, que em estágios primários de desenvolvimento o aumento do uso de energia tende a ser mais rápido do que o crescimento econômico. Isso colocaria em xeque as metas públicas do 11º Plano Qüinqüenal chinês: reduzir em 20% o consumo de energia, em proporção ao crescimento do PIB, até 2010.

'A prioridade sem dúvida é o desenvolvimento', afirmou Cai ao Estado. 'Não há como combater a pobreza sem crescimento. A meta é dobrar o PIB per capita até 2020', disse, referindo-se ao plano revisto anualmente pela Assembléia do Povo, à luz das diretrizes do Partido Comunista. Para tanto, nas estimativas do ministro, o PIB teria de ir dos atuais US$ 2,6 trilhões para US$ 6 trilhões em 2020.

No ano passado, a China reconheceu não ter conseguido conter o ímpeto do crescimento. Ela fechou o ano com crescimento de 10,7%, um ponto porcentual acima da média de 9,7% que o governo chinês vem divulgando como meta oficial. Segundo o ministro Cai, não há como o país alcançar suas metas de infra-estrutura sem crescer, no mínimo 7%, todo ano, até 2020.

Uma questão para o mundo acompanhar, e um nó para a China desatar com paciência e dedicação confucianas. Enquanto isso, o sol segue peneirado pela mái em Tang Paradise.

TRAGÉDIA AMBIENTAL

>20 das 30 cidades mais poluídas do mundo estão na China

>70% dos lagos chineses e 5 dos 7 maiores sistemas fluviais do país são poluídos

>US$ 300 bilhões, equivalente a 12% do PIB, é o prejuízo anual causado pela poluição

>30% do território da China sofre com chuvas ácidas causadas pelo rápido crescimento econômico

>700 milhões de chineses, metade da população, consomem água que não corresponde aos padrões mínimos da Organização Mundial da Saúde.