Título: Ministro da Informação admite 'efeito colateral'
Autor: Gandour, Ricardo
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2007, Internacional, p. A27

'Façamos um grande esforço para construir uma sociedade socialista harmoniosa.' O slogan, lema do atual presidente, Hu Jintao, pode ser lido, em mandarim e em inglês, ao longo das estradas pelo interior da China.

'Se afirmamos que queremos construir uma sociedade harmoniosa, quer dizer que assumimos o que ainda não somos', diz Cai Wu, ministro da Informação, em conversa de franqueza até surpreendente - num país em que falar do massacre da Praça da Paz Celestial (que culminou, em 4 de junho de 1989, com um estudante desafiando uma coluna de tanques) ainda é um tabu entre as pessoas comuns.

Em entrevista na semana passada a um grupo de jornalistas em visita ao país, entre eles o Estado, Cai Wu não chegou aos pontos polêmicos que dominam as críticas do Ocidente. Severas restrições à expressão do pensamento, proibições de livros, censuras a sites, desrespeito a patentes, péssimas condições de moradia, de trabalho e de salários de boa parte da população são apenas alguns deles. Mas, genericamente, admitiu que há 'desigualdades', 'efeitos colaterais' e 'ainda há muito a ser feito'.

Com uma economia moderna e aberta aos mercados mundiais, a grande questão da China para o século 21 é avançar no campo político - leia-se Estado de Direito e democracia. Cai afirma que a China vai chegar lá. Mas, lembrando Pelé nos anos 70, dá a entender que, por enquanto, o povo chinês ainda não está preparado para votar nas eleições nacionais.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

DESAFIOS

A China tem enormes desafios pela frente. Quando se está em busca constante do progresso e do crescimento econômico, os problemas e as dificuldades naturalmente emergem, como o descolamento entre o crescimento econômico e o desenvolvimento social. A abertura da economia trouxe, além do progresso, conseqüências importantes em termos de desigualdade de renda e outros efeitos colaterais.

Há um descompasso entre o desenvolvimento rural e o urbano, e também um descompasso regional: as províncias costeiras estão se desenvolvendo bem mais que as interioranas. Outro desafio é o natural impacto nos recursos naturais e no meio ambiente.

PRIORIDADES

Mesmo com todos esses desafios, o desenvolvimento é prioridade. Não há como combater a pobreza sem crescimento econômico. O país tem de focar nas necessidades do povo, e há uma crescente demanda por produtos e serviços. Temos de tentar manter o crescimento econômico, buscando ao mesmo tempo justiça social e proteção ao meio ambiente.

METAS

A meta do governo é dobrar o PIB per capita até 2020. Para isso, precisamos alcançar um PIB total de US$ 6 trilhões (o PIB chinês hoje é de US$ 2,6 trilhões, valor de 2006; no mesmo ano os Estados Unidos fizeram US$ 11 trilhões).

Para isto, temos de crescer no mínimo 7% ao ano até lá. Esperamos encontrar um cenário mundial favorável nesse período, em termos de paz e prosperidade.

MODELOS

Estudamos as experiências neoliberais da América Latina e analisamos com atenção os resultados e as conseqüências. No início das reformas chinesas, nossos contatos no Ocidente esperavam que adotássemos o modelo neoliberal, e procuraram nos convencer disso.

Como diz o presidente Hu Jintao, analisamos 'cientificamente' a questão do crescimento e concluímos pelo que chamamos de 'socialismo com características chinesas'. Isso significa uma economia de mercado combinada com premissas do sistema socialista. Tentar mesclar a eficiência do capitalismo com a justiça do socialismo. Acho que esse é o grande legado de Deng Xiaoping, na minha opinião uma inovação sem precedentes na história.

Vários dos meus amigos europeus vivem me dizendo que a economia de mercado é incompatível com o socialismo. Mas eu respondo a eles: julguem vocês mesmos o que está acontecendo na China e verão que é possível.

PLANEJAMENTO CENTRAL

A chave do sucesso da China vem da relação entre o Partido Comunista Chinês (PCC) e o governo, num sistema que nunca nos fez decidir sob pressão de outros países, e sim somente depois de estudar profundamente todos os aspectos de uma questão.

PROBLEMAS

Se afirmamos que queremos construir uma sociedade harmoniosa, quer dizer que assumimos que ainda não somos isto, que estamos no caminho. Francamente, ainda temos muitos problemas pela frente. Nossas empresas poluem demais. A questão ambiental é algo que precisamos abordar melhor. Precisamos aprimorar a democracia e o sistema legal. Considero que temos hoje alguns fundamentos importantes já implantados, no âmbito do Congresso Nacional do Povo (CNP). Além do PCC, que é o partido que governa, temos oito outros partidos, que cooperam também.

SISTEMA POLÍTICO

Ainda há muito a ser feito, apesar de, como mencionei, os fundamentos estarem aí. Atualmente há eleição direta nos condados, nos distritos e nas cidades. Mas nas províncias a eleição ainda é indireta.

Os membros do Congresso Nacional do Povo também são eleitos indiretamente. Mas por enquanto. A China ainda não está em condições de ter eleições diretas em nível nacional.

Nós ainda temos muitos desafios na área de educação, nas telecomunicações, temos de aprimorar muitas coisas antes disso.

SOCIEDADE

Temos de criar 10 milhões de empregos por ano. Nas cidades a pressão do desemprego é bem maior do que no campo. Mas nas áreas rurais temos hoje um contingente de 100 milhões de trabalhadores excedentes, que estão na expectativa de encontrar um trabalho nas áreas urbanas. Como transformar essas pessoas em trabalhadores urbanos da noite para o dia?

Nosso sistema de seguro social ainda está longe do ideal. Na área de saúde há muitos problemas, especialmente para as pessoas das áreas rurais. No campo da educação, temos de satisfazer as demandas da sociedade, mas pelo menos hoje temos os nove anos básicos, gratuitos, para as crianças. Na habitação, como o custo dos imóveis está subindo, como garantir o acesso para todas as pessoas? Nos condados, os desafios são gigantescos em termos de exclusão das populações. Elas têm de ser inseridas no crescimento econômico.

OCIDENTALIZAÇÃO SELETIVA

Some-se a isso tudo o desafio de manter a nossa cultura, de evitar a 'ocidentalização predadora' da China. Estamos nos abrindo para o mundo, mas precisamos resistir às influências negativas da cultura ocidental.

Deng Xiaoping dizia que quando se abre a janela entra o ar fresco, mas também podem entrar alguns mosquitos. Precisamos abrir a janela, mas colocando alguns filtros para barrar os mosquitos.

GERAÇÕES

Há um abismo entre gerações, entre a minha e a dos jovens atuais. Eles preferem o McDonald's e o rock à tradicional gastronomia e músicas chinesas. Eles preferem as festas natalinas ao Festival da Primavera.

POLUIÇÃO

Não é um problema só da China, é de todos os países. Agora, é uma questão muito delicada para os países em desenvolvimento, porque temos de manter o crescimento para atender as demandas que surgem.

Se olharmos em perspectiva a história da civilização, veremos que a humanidade mostrou ser capaz de contornar. Os problemas ambientais vêm da industrialização dos últimos dois séculos. Os países que causaram isso têm de assumir essa responsabilidade. Os países desenvolvidos têm de usar sua tecnologia para ajudar os países em desenvolvimento.

Falando muito francamente, a China tem severos problemas nessa questão, tanto no ar, na água e até solo. Vamos ter de lidar com isso, precisamos adotar novas tecnologias.

QUEM É CAI WU

>Ministro da Informação do Conselho de Estado da República Popular da China desde junho de 2005 >Idade: 57 anos >Formado e doutorado em Direito pela Universidade de Pequim >Foi vice-ministro do departamento internacional do Comitê Central do Partido Comunista Chinês (1997-2005).