Título: O trabalho em Cuba
Autor: Pastore, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/05/2007, Economia, p. B2
Fidel Castro não se conforma com o programa do etanol. O jornal cubano Granma tem dado abrigo a violentos ataques ao governo brasileiro. Fidel diz que transformar alimentos em combustível é uma monstruosidade. Na sua opinião, o Brasil estaria perpetrando uma verdadeira 'eutanásia dos pobres'. Pior. Segundo Fidel, a cultura e o corte da cana-de-açúcar vêm sendo feitos com sangue, suor e lágrimas dos lavradores que não têm onde cair mortos. Ele acusa o Brasil por 'permitir que essas pessoas trabalhem sem registro em carteira, em condições ultraprecárias, sem equipamentos de proteção e sem alimentação e água adequados para o seu trabalho. Uma verdadeira escravidão'! Ninguém vai querer dizer que as condições na lavoura de cana-de-açúcar são um modelo de trabalho decente. Entretanto, os acusadores têm de ser minimamente qualificados para criticar. A propósito, como é o trabalho em Cuba? A grande maioria dos salários naquele país gira em torno do equivalente a US$ 25 por mês, ou seja, R$ 50. Isso vale para os cortadores de cana, assim como para os médicos, engenheiros e pesquisadores. Todos têm de se sujeitar ao racionamento de alimentos, que são muito escassos. Noventa por cento dos 4,8 milhões de cubanos ativos trabalham para o Estado. Esse mesmo Estado é visceralmente contra o trabalho por conta própria. Quem quiser abrir uma lanchonete tem de pagar um preço proibitivo para conseguir uma licença do governo - cerca da US$ 850! Ninguém consegue desenvolver suas habilidades de empreendedor. Isso sim é trabalho precário. Para quem reclamar? Apesar de ter assinado a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, Cuba permite a existência de apenas uma entidade sindical - a Central de Trabajadores de Cuba (CTC), que funciona como correia de transmissão do governo para levar adiante os princípios do regime socialista. Ou seja, quem estiver descontente que guarde o descontentamento para si mesmo. Não deve haver outro país no mundo que tenha uma lista de códigos de disciplina no trabalho tão longa quanto a da Ley de Organos de Base de Justicia Laboral, aprovada em 1992. A Lei dos Contratos Coletivos de Trabalho, de 2002, prevê a livre negociação, mas, na prática, há apenas um único grande empregador que é o governo. Quando há impasse, este é submetido a mecanismos de conciliação e, se perdurar, será arbitrado por um órgão do governo (Oficina Nacional de Inspección del Trabajo), na presença das partes interessadas, leia-se o Estado, de um lado, e a CTC, de outro, representando os empregados do governo (Decreto Ley 229 sobre Convenio Colectivo de Trabajo, 2002). Sendo o único empregador, as empresas são obrigadas a pagar ao governo os serviços dos trabalhadores. Depois de reter a maior parte dos recursos, o governo repassa os salários a quem trabalhou. Se uma empresa paga US$ 100 ao Estado, este repassa aos trabalhadores a irrisória quantia equivalente a US$ 20 ou US$ 25. Há casos em que os trabalhadores recebem menos do que isso. A maioria dos diplomados enfrenta restrições severas para exercer suas profissões no minúsculo setor privado. Onde está o estímulo para trabalhar nessas condições? Esse é o grande problema de Cuba. Apesar de possuir uma força de trabalho razoavelmente educada, especialmente nos campos da saúde, educação geral e educação física, a produtividade do fator trabalho é baixíssima. A variação dos salários entre profissões é muito estreita, além da remuneração ser irrisória (Luis Locay, The future of Cuba's labor market, Institute for Cuban and Cuban-American Studies, University of Miami, 2002). A ineficiência é sistêmica. Isso dá a Cuba uma característica muito peculiar na América Latina: boa educação e baixa produtividade. Os constrangimentos à criatividade são tantos que ninguém se anima a trabalhar com eficiência. É o mais espetacular exemplo do mau uso dos talentos humanos. Após as reformas econômicas realizadas em 1993 e 1994, depois da retirada do apoio econômico da então União Soviética, entre 1989 e 1991, o governo, como o grande empregador, foi forçado a reduzir o emprego no país. Diante de tanta precariedade e tamanha violação dos direitos fundamentais dos seres humanos, quais são as credenciais de Fidel Castro para criticar o Brasil?