Título: Sessão da tarde no Senado
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/05/2007, Notas e Informações, p. A8

A cada crise que os envolve, os políticos brasileiros fazem pensar que o País seria outro, se aplicassem na defesa do interesse nacional uma fração que fosse do seu talento na defesa dos seus interesses pessoais. O exemplo da hora, naturalmente, é o da performance - no sentido mesmo em que se usa o termo nas artes cênicas - do presidente do Senado, Renan Calheiros, tendo como coadjuvantes muitos dos seus pares na chamada Câmara Alta da República. A fala do político alagoano, que reconheceu ter recorrido ao lobista de uma grande empreiteira para pagar aluguel e pensão à ex-namorada com quem teve uma filha, foi um espetáculo de prestidigitação de dar inveja aos mais experientes ilusionistas profissionais. A isso se seguiu um ensaiado truque de teatro, para preparar o grand finale da matinê de segunda-feira no plenário do Senado.

Os dicionários definem prestidigitação como a habilidade de fazer um objeto desaparecer das vistas do público ou de transformá-lo aparentemente em outro, num abrir e fechar de olhos. Foi o que fez o senador Calheiros, em 25 minutos. Ele tratou de transmutar numa ¿questão pessoal¿ - os desdobramentos de uma ligação extraconjugal - o problema objetivo das ligações, envolvendo dinheiro vivo, de um presidente do Congresso Nacional com o lobista Cláudio Gontijo, incumbido de promover os interesses de uma das maiores prestadoras de serviços ao setor estatal, a Mendes Júnior, junto aos donos do poder federal. O senador anunciou o passe de mágica logo na abertura de seu discurso, quando, diante de seus familiares acomodados na primeira fila do plenário, avisou que iria ¿rasgar a alma¿.

Era Renan Calheiros no papel do penitente Bill Clinton, rasgando a alma em público, ao lado da mulher e da filha, por suas reinações com uma estagiária da Casa Branca, Monica Lewinsky. Com a diferença de que o americano falava daquilo que dizia respeito exclusivamente à sua ¿mais íntima privacidade¿, para repetir uma expressão de Calheiros. Ao passo que este, com seu passe de mágica, tentava escamotear uma situação muitas vezes mais grave, do ângulo do decoro parlamentar, vale dizer, da moralidade pública: a origem suspeita dos valores entregues regularmente à jornalista Mônica Veloso por um lobista de uma grande empreiteira de obras públicas. Na sua ¿confissão¿, o senador alegou que recorreu a Gontijo porque ele é amigo de ambos. A versão teve pernas curtas. Pouco depois, Mônica fez saber, por meio de seu advogado, que foi Calheiros quem a apresentou a ele.

De resto, na era dos depósitos bancários instantâneos, via internet, que dispensam contatos face a face às vezes indesejáveis, nada mais natural que a revelação sobre transferências periódicas em espécie - no escritório de uma empreiteira - acionasse estridentes sinais de alarme. Evidentemente, tudo isso é óbvio para qualquer dos senadores daquela platéia onde não há lugar para ingênuos. Mas eles também eram parte do show. A deixa para a entrada dos coadjuvantes em cena foi o ¿pedido¿ do correligionário Romero Jucá, do PMDB de Roraima, para que o presidente da Mesa, o próprio Calheiros, suspendesse a sessão, tão logo terminou de falar. Atendido o pedido, imediatamente ele se colocou em posição de quem sabe que vai ser cumprimentado. Na fila dos cumprimentos, inaugurada por sua esposa - que assistiu a toda a sessão -, estava praticamente a platéia inteira, inclusive os membros da oposição.

A encenação serviu tanto para evitar discursos destoantes do clima, que pudessem desfazer a mágica, como para induzir os presentes a formar fotogênica fila suprapartidária de cumprimentos ao orador. Depois, baixado o pano - ou seja, fora da tribuna do Senado -, se sucederam as declarações dando o episódio por encerrado. Mesmo o corregedor da Casa, Romeu Tuma (DEM-SP), que tem 30 dias para se pronunciar sobre a reportagem da Veja que desencadeou o caso, adiantou sentir que Calheiros ¿tem documentos que comprovam que falou a verdade¿. O que há de ter calado fundo entre os políticos - para os quais meia palavra basta - foi o fecho da peça do senador Calheiros, em que se compromete a apoiar ¿qualquer investigação dentro da lei¿ sobre ¿todas as denúncias que envolvam relações de empresas e empresários com o Legislativo e o Executivo¿. Para bons entendedores, bastou a meia palavra.