Título: Maioria inútil
Autor: Souza, Paulo Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

Desde o início desta legislatura, todas as votações na Câmara dos Deputados revelam um comportamento monolítico da base de apoio ao governo sem precedentes desde a redemocratização do País. Acostumado com os embates legislativos durante o governo Fernando Henrique Cardoso - quando dificilmente obtínhamos a unanimidade dos partidos da base de apoio na aprovação das grandes reformas que construíram as bases para a bonança econômica que hoje vivemos -, surpreende-me agora observar um inusitado comportamento obediente e sem dissensões. Isto tudo protagonizado por partidos que sempre revelaram certa heterogeneidade de pensamento e de ação.

Essa hegemonia política do governo transborda o Parlamento e abrange também outros segmentos sociais. Quem não observou o comportamento dócil das centrais sindicais nas comemorações do dia 1º de Maio passado? De outro lado, as manifestações do empresariado não são menos favoráveis ao governo e os próprios meios de comunicação parecem ter perdido subitamente seu senso crítico e seu poder de questionamento, perdoando gafes, contradições e insensatezes protagonizadas pelas mais altas autoridades.

Um observador menos avisado consideraria o fenômeno normal, dadas as circunstâncias de ter sido o presidente recentemente reeleito com 60% dos votos e a economia apresentar um comportamento razoável, apesar de medíocre. Sem dúvida, são duas condições que favorecem o entendimento e diminuem as arestas políticas.

Essa unanimidade, entretanto, não está sendo construída em torno de idéias ou de propostas para o desenvolvimento do País. No plano político, a argamassa que une pólos tão diversos no espectro político e ideológico é a distribuição de cargos e benesses no governo. As grandes centrais sindicais parecem ter sucumbido ao mesmo canto de sereia, com a expectativa de grandes benefícios com a reforma sindical que o presidente prometeu enviar ao Parlamento. Além disso, ganharam notável espaço em dois Ministérios de peso - do Trabalho e da Previdência - e obtiveram a promessa de sepultamento do projeto de reforma da legislação trabalhista que beneficiaria os trabalhadores, mas diminuiria o poder sindical. Os empresários são aquinhoados com vagas promessas de reformas nas questões tributária e trabalhista, contempladas em pronunciamentos presidenciais que contradizem o que ele próprio assegura a outros segmentos.

É notório que nossos grandes problemas nacionais não estão resolvidos ou se vêm agravando. Nossa economia cresce pouco e gera muito poucos empregos; nosso sistema tributário é um claro empecilho para o investimento privado; o nível do investimento público é muito baixo; nossa infra-estrutura de transporte está sucatada e a perspectiva de um apagão energético é iminente por falta de investimentos no setor; a maioria dos trabalhadores está submetida a relações informais de emprego, que não lhes asseguram nenhum benefício ou segurança futura; quase um quinto de nossos jovens de 15 a 17 anos não estuda nem trabalha e essa proporção aumentou nos últimos quatro anos; a insegurança dos cidadãos atinge nível sem precedente em nossa História - no Brasil as mortes violentas são hoje mais freqüentes do que em países conflagrados pela guerra -; o tráfico de drogas e armas está fora de controle, alimentando facções criminosas que dominam áreas importantes de nossas grandes metrópoles; a máquina pública aumenta sua ineficiência, na proporção em que é loteada e aparelhada; nosso sistema político - partidário e eleitoral - é desacreditado e pouco representativo do cidadão, o que facilita as práticas de corrupção que atingiram em anos recentes níveis inéditos na História do País.

A agenda governamental para enfrentar tão complexas questões e que promoveria a transformação da realidade brasileira simplesmente não existe ou não ultrapassa a mera declaração de intenções. Suas iniciativas variam da timidez do PAC - uma listagem de obras somadas a algumas isenções fiscais setoriais de duvidosa prioridade - à negação de responsabilidade em relação a problemas gravíssimos, como ficou patente na recente entrevista presidencial ao se referir à violência e à insegurança do cidadão. Embalado por pesquisas de opinião que lhe são momentaneamente favoráveis, o presidente parece acreditar que o imobilismo o manterá nessa situação para sempre.

A construção de maiorias sem projeto e com a utilização dos métodos tradicionais de cooptação política propicia o alargamento do fenômeno da corrupção, que se tem manifestado no aparecimento de novos e sucessivos casos que atingem várias instâncias do poder. Os acontecimentos da última semana revelam uma crise institucional de proporções gigantescas e alarmantes, mas são um mero corolário do que já se vinha agravando na vida nacional.

É preciso que o presidente compreenda a gravidade da situação e exerça uma liderança verdadeira, apresentando ao País uma agenda que contemple um processo de reformas capazes de equacionar os problemas mencionados e introduza mudanças significativas nas práticas políticas nefastas em que os partidos brasileiros se viciaram. O mar de rosas vivido hoje na economia mundial dá condições objetivas para ousadias muito maiores do que as que estamos realizando. Essas circunstâncias favoráveis não se repetirão tão cedo. A História cobrará do presidente a sua omissão.