Título: Triangulação Perigosa
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/05/2007, Espaço Aberto, p. A2
Nada mais surpreende em matéria de corrupção no Brasil. Nem o desfile de figurões algemados, nem o batismo de operações policiais ou mesmo simbolismos estrambóticos, como a apropriação do sobrenome do ¿sábio do povo shakya¿, o príncipe Sidarta Gautama, mais conhecido como Buda, para designar uma empresa-braço da corrupção que se alastra pelos desvãos da República. A razão para a desesperança repousa na nova composição do poder dentro do Estado contemporâneo, e que, entre nós, se consolida por encontrar melhores condições para se expandir. A administração pública, a política e empresas privadas são os pólos da tríade que efetivamente tem o comando dos empreendimentos necessários ao País, alguns deles desvirtuados para ingressarem no balcão de negócios. Por sua abrangência e, mais que isso, pela imbricação de seus eixos, a triangulação perigosa passa a ser o foco de investigações da Polícia Federal, deixando à mostra um paradoxo: o Produto Nacional Bruto da Corrupção vem crescendo, ao contrário do que se propaga.
A hipótese agrega um conjunto de variáveis, como a fluidez do Estado, a imbricação de fronteiras entre os Poderes constitucionais, a transformação da política em profissão altamente rentável, a fragilidade dos mecanismos de punição, a morosidade da Justiça, a rotação de dirigentes e a cultura regada com a semente do fisiologismo, herdada dos nossos colonizadores. Tais vetores funcionam como lubrificantes da engrenagem de um novo ajuntamento de forças, que passa a reorganizar o corpus da administração pública, subordinando o interesse geral à salvaguarda de grupos. O salto do patrimônio de alguns políticos entre uma campanha e outra foi demonstrado por pesquisa. No ciclo FHC, o patrimônio de 32 congressistas, denunciados como mensaleiros e sanguessugas, cresceu 15%. No governo Lula, esse mesmo grupo aumentou em 31,7% seu patrimônio. Mais: os mesmos parlamentares, em 2002, gastaram em campanhas eleitorais R$ 6,3 milhões, montante que, em 2006, chegou aos R$ 47,9 milhões (aumento de 661%). Não se pretende aduzir que esse grupo tenha feito tramóias ou ganho dinheiro de forma desonesta. Muitos têm negócios fora da política e são empreendedores. Mas fica uma suspeita no ar.
É inimaginável. A corrupção se expande sob a lupa de instrumentos de controle, entre os quais a Controladoria-Geral da União, a Polícia Federal e o Ministério Público. O número de denunciados em escândalos cresce, fato que o governo procura capitalizar em sua conta ao acentuar que ¿nunca se combateu tanto a corrupção quanto agora¿. Pode ser. Não dá, porém, para esconder a evidência: há mais criminosos porque a teia do crime ficou mais extensa. Sob os holofotes da mídia e o selo da eficiência, as operações policiais se sucedem, chamando a atenção pelo espalhafato. De 2006 até hoje, 221 ações foram realizadas. As CPIs também fazem o espetáculo. Mas os feitos acabam gerando uma reversão de expectativas, até porque o odor do marketing contamina a efetividade das operações. Após o impacto inicial, as ações sensacionais perdem força. O jacaré vira lagartixa. Espraia-se o sentimento de que tudo acaba em pizza. Os mensaleiros de ontem se safaram, alguns por obra e graça do corporativismo, outros renunciando aos cargos para voltarem ao Parlamento com as bênçãos dos eleitores. Nenhum dos 72 parlamentares acusados de ligação com a máfia das ambulâncias foi condenado. A lentidão da Justiça corrobora a sensação de impunidade. Veja-se a Operação Hurricane, que só ocorreu por conta da lerdeza judiciária. Os bingos vinham funcionando sob a proteção de liminares, até que se deu o flagrante da compra de sentenças para seu funcionamento. Como se pode exigir solidez institucional num país que eterniza situações sub judice? Só mesmo aqui provisório é sinônimo de permanente.
Nas salas dos tribunais, a fila dos algemados se desfaz ante o império da lei. Liminares para soltura são concedidas. Autoridades se digladiam por conta disso. Mas a norma é clara. Ninguém é culpado antes de ser julgado. Enxerga-se aí o raio X do Estado-espetáculo. As prisões se encaixam na modelagem do marketing de um governo que prega: não distinguimos ¿colarinhos-brancos¿ e anônimos na multidão. Na seara política, a cultura de autopreservação anima os atores, até porque os casos atingem quase todos os partidos. A Operação Navalha envolve membros de nove partidos, enquanto na máfia dos sanguessugas foram acusados 72 deputados e senadores de nove siglas. Pela porta do mensalão, entraram 22 parlamentares de oito legendas.
A polêmica abriga, ainda, o foro privilegiado, destinado a dar guarida ao mandato de representantes eleitos e à autoridade de juízes, promotores e ministros de Estado. Há cerca de 700 autoridades dos três Poderes nessa condição. A contrariedade se forma pela recorrência ao princípio constitucional da igualdade. A discussão de cunho ético-moral-jurídico embute a questão: a nomeação do magistrado pode ter sido aprovada pelos potenciais indiciados.
Este é o arcabouço dentro do qual se fecham as combinações entre os eixos do novo triângulo do poder, cujo fortalecimento exige, em contrapartida, mecanismos para coibição de desvios. E aqui se chega ao orçamento impositivo como meio para tirar parlamentares, governadores e prefeitos do jugo do governo federal. Sua aplicação fechará uma grande torneira da corrupção, porque tornará obrigatória a execução do Orçamento-Geral da União, evitando que o Executivo mantenha a condição de liberar verbas. Com torneiras abertas, empresas como a Gautama e pessoas como Zuleido continuarão a agir nos intestinos da administração. E até a usar, como disfarce, a figura de Buda, o príncipe que renunciou às coisas materiais para se dedicar à busca da Verdade. Coisas materiais que fazem a festa das quadrilhas. E que os criminosos gostariam de ver muito bem escondidas.