Título: Até quando?
Autor: Mellão Neto, João
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Isso já está indo longe demais. Um punhado de estudantes da Universidade de São Paulo (USP) há mais de um mês está ocupando o prédio da Reitoria, em flagrante ato de esbulho e desrespeito às leis. A Justiça já expediu mandado de reintegração de posse, a tropa de choque foi para lá, mas o governador José Serra - provavelmente em função de seu passado de ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) - hesita em usar a força. Isso não é bom para ele, que sempre passou para a população a imagem de um governante enérgico. Sejam lá quais forem as razões de Serra, o fato é que a sua hesitação só tem servido para fortalecer o movimento estudantil. Uma facção minoritária de professores e funcionários da universidade resolveu, de forma oportunista, aderir ao movimento, cada qual por razões diversas, a ponto de ninguém saber mais quais são as reais reivindicações dos paredistas.

Deixando de lado as demandas salariais de professores e funcionários, que chegaram depois, vamo-nos ater à pauta de demandas dos bravos estudantes. Ela é extensa. O ponto central seriam dois decretos do governador que, segundo eles, feririam a tão decantada autonomia universitária. O principal deles é o que exige que as contas das três universidades públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp) sejam prestadas online no sistema integrado de finanças do governo paulista. O efeito prático disso seria o de que todo e qualquer cidadão poderia ter aceso, via internet, à forma como são despendidos os recursos das instituições de ensino. Esse é um direito dos cidadãos, uma vez que as universidades são gratuitas para os alunos e custeadas pelos contribuintes. Nada mais justo que estes mesmos contribuintes, se tiverem interesse pelo assunto, possam saber de que maneira o seu dinheiro é gasto. No que isso fere a autonomia universitária?

A não ser... A não ser que o dinheiro dos contribuintes seja muito mal gasto. Nesse caso, é compreensível que os estudantes receiem que as contas das universidades venham a público.

Levando em conta a realidade brasileira, parece ser esse o caso. O estudante da USP é um privilegiado. Antes que venham alegar que sou um despeitado porque não estudei lá, devo declarar que passei no vestibular de Direito da USP, mas optei por estudar Administração na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Voltando à questão, o estudante da USP, além de ter o seu curso custeado pelo Estado, ainda tem alimentação, moradia, transporte e lazer subsidiados, quando não gratuitos. A maior parte deles nem sequer precisa disso. Segundo todas as pesquisas revelam, a maioria dos alunos da universidade provém de famílias com condições de arcar com as despesas de ensino de seus filhos. Haja vista que os pátios de estacionamento do campus vivem lotados com os automóveis dos estudantes. Não obstante isso, a USP despende fortunas com restaurantes subsidiados para os alunos, um conjunto residencial onde boa parte dos apartamentos é ocupada por ex-alunos ou emprestada a terceiros (há até um escritório do MST por lá), uma praça de esportes com equipamentos de primeiro mundo e uma série de regalias com que o restante do mundo universitário nem ousa sonhar.

Esses vândalos que ocupam a Reitoria nem sequer são cidadãos. O exercício da cidadania implica obter uma série de direitos, mas também assumir um conjunto de contrapartidas para com a sociedade. Eles nada produzem. Vivem à custa do Estado e da mesada de seus pais. Falam grosso durante o dia e aguardam ansiosos a noite, quando papai e mamãe lhes vêm trazer comida e cobertores. Que autoridade moral eles têm para peitar o Estado, que sustenta os seus estudos, e desautorizar a Justiça?

É compreensível, até certo ponto, a cautela do governador José Serra. Ordenar a invasão da Reitoria pela tropa de choque pode resultar em vítimas indesejáveis. Talvez a sua estratégia seja vencer pelo cansaço. O problema é que há uma ordem judicial que não foi cumprida, e também a sua imagem pública, que perde pontos, uma vez que ele se firmou perante o povo como um homem decidido.

Certo ou errado, apenas à guisa de exemplo, eu me recordo de um episódio que presenciei em 1987, quando era secretário de Coordenação Governamental do prefeito Jânio Quadros. A sede da Prefeitura, então, era no Parque Ibirapuera, num pavilhão idêntico ao da Bienal. Era um local muito vulnerável. Avisado de que haveria uma manifestação estudantil contra ele, Jânio tão-somente mandou requisitar um caminhão-pipa do Corpo de Bombeiros e pôs a Guarda Civil Metropolitana a postos. Ficou observando da janela.

Os estudantes foram chegando e se aglomerando nas proximidades do portão 3 do parque. Jânio só espreitava.

O coronel-chefe da assistência militar foi ficando impaciente.

¿Podemos agir, prefeito?¿

¿Ainda são poucos, coronel, aguarde.¿

Mais e mais manifestantes se concentraram, gritando palavras de ordem exaltadas. Começaram a avançar para dentro do portão em direção à Prefeitura.

Jânio perguntou ao coronel: ¿Quantos são agora?¿

¿Já tem mais de mil.¿

¿Ótimo! Então, pode esfriar o ânimo da moçada.¿

O caminhão-pipa manobrou, postou-se de frente para a multidão e o esguicho antiincêndio foi ligado. Voou gente para tudo que é lado. A manifestação acabou. O ¿ânimo da moçada¿, de fato, esfriou.

E ninguém se feriu.