Título: Oportunidade perdida dá lugar ao desastre
Autor: Tisdall, Simon
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/06/2007, Internacional, p. A15

Desde que apareceu inesperadamente no cenário mundial, em 2000, o presidente russo, Vladimir Putin, tem-se alternado entre desconcertar, encorajar e ultrajar interlocutores internacionais. Mas num aspecto-chave o ex-oficial da KGB de sorriso gélido tem sido notavelmente coerente.

Após as humilhações da era Boris Yeltsin, ele se empenhou para restabelecer a Rússia como uma força a ser levada em consideração. Agora ele conseguiu.

Seu objetivo poderia ter sido obtido em colaboração com o Ocidente, mas em vez disso o poder de reafirmação da Rússia está agora definido na oposição ao Ocidente. Poderia ter sido diferente. Ignorando a Chechênia e outros nervos expostos, o britânico Tony Blair tentou arduamente agradar a Putin em 2000, deleitando-o com a simplicidade de mangas de camisa numa cervejaria de Moscou. Ficou famosa a declaração de George W. Bush, quando os dois se encontraram pela primeira vez em 2001, de que ele havia vislumbrado a alma de Putin e gostara do que vira.

Mas o presidente russo não se deixou encantar nem decifrar assim tão facilmente. Chamou Bush de ¿sentimental¿ e desconsiderou friamente Blair, qualificando-o apenas de ¿agradável¿. Numa entrevista coletiva na cúpula do G-8 em Gênova, em 2001, avisou que a Rússia sob seu comando teria um papel diferente, mais sério, com uma robusta pauta própria.

A Rússia manteria sua independência estratégica e não seria devedora de ninguém. Mas nada disso representava uma ameaça, disse ele. Em vez de abandonar o Tratado Antimísseis Balísticos (ABM) de 1972 e construir um sistema de defesa antimíssil do tipo Guerra nas Estrelas, o governo Bush deveria juntar-se a Moscou na formulação de uma nova estrutura global de segurança, pós-Guerra Fria.

¿Não existe mais Pacto de Varsóvia nem União Soviética, mas a Otan continua a existir e desenvolver-se¿, disse Putin. Isso ameaçava os interesses da Rússia. Em vez disso, ele propôs ¿uma única segurança e defesa espacial¿ na Europa, dissolvendo a Otan ou permitindo que a Rússia entrasse na aliança. Ou formando uma organização totalmente nova de parceiros iguais.

A idéia de Putin, rapidamente ofuscada pelo 11 de Setembro, não foi discutida por Washington - uma decisão, ou omissão, que resultou no confronto que se desatou nos últimos meses e domina a conferência de cúpula do G-8 na Alemanha. O Tratado ABM foi sumariamente abandonado e os planos de defesa antimísseis dos EUA expandiram-se, incluindo instalações na Polônia e na República Checa - a fagulha para o disparo de artilharia diplomática de Putin no fim de semana, no qual ameaçou apontar mísseis para a Europa.

A expansão real ou proposta da Otan continua avançando rapidamente. Os EUA querem arrendar bases militares na Bulgária e na Romênia. Sua presença no Oriente Médio inchou desastrosamente. E, no flanco oriental da Rússia, o Japão está desenvolvendo instalações de mísseis e defesa com a ajuda dos EUA.

Passados seis anos, os indícios da queixa de Putin de que o Ocidente estava tentando cercar a Rússia apenas aumentaram. Foram fomentadas revoluções ¿brandas¿ na Geórgia, Ucrânia e Sérvia e as próximas poderão dar-se na Bielo-Rússia e na própria Federação Russa. A União Européia e os Estados Unidos estão ativamente buscando fortalecer-se no ¿quintal¿ da Rússia - as repúblicas soviéticas ricas em petróleo da Ásia Central.

Com a aproximação das eleições parlamentares e de uma transição presidencial potencialmente desestabilizadora, o governo Putin enfrenta críticas ásperas do Ocidente por causa dos direitos humanos, de seu ¿déficit democrático¿ e do desprezo à lei, ressaltado pelos assassinatos de Anna Politkovskaya e Alexander Litvinenko.

Putin pode ser paranóico. É uma longa tradição entre os líderes russos. Ele pode ser ditatorial e enganoso, como denota sua afirmação do fim de semana de ser um ¿democrata puro e absoluto¿ (embora talvez essa seja sua idéia de bom humor). Mas, no que diz respeito a questões de segurança, ele tem razão. O desenvolvimento pela Rússia de uma nova geração de mísseis intercontinentais, seu crescente desdém pela forças convencionais e pelos tratados de forças nucleares intermediárias e agora sua ameaça de apontar mísseis para cidades européias - algo provavelmente retórico, mas ainda assim alarmante - são conseqüências da oportunidade perdida em 2001. O intenso medo que Putin tem do Ocidente significa que o Ocidente agora deve temê-lo.