Título: Uma proposta inoportuna
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2007, Notas e Informações, p. A3

Soa no mínimo estranha, quando a corrupção e o tráfico de influência são temas centrais do noticiário político, a proposta do ministro de Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, de liberação automática das verbas de emendas orçamentárias apresentadas por deputados e senadores. O ministro, responsável pela articulação entre governo e Congresso, voltou a defender essa idéia num café-da-manhã com jornalistas, em Brasília. É uma proposta inoportuna. Neste momento, seria muito mais benéfico, para o País, discutir a limitação, a disciplina ou mesmo a extinção das emendas tais como são produzidas atualmente. No próprio Congresso a idéia de mudanças foi relançada, há poucas semanas, como resposta a novas denúncias de irregularidades. O presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, chegou a defender a extinção das emendas de bancadas e a implantação do Orçamento impositivo. Ao menos, tacitamente, ele reconheceu, nessa ocasião, a conveniência de tornar o Tesouro menos vulnerável ao abuso, à irresponsabilidade e à pilhagem.

¿A questão das emendas não deve ser discutida com preconceito¿, disse o ministro em resposta ao comentário de um jornalista. ¿A palavra emenda¿, acrescentou, ¿não traz catapora ou corrupção.¿ Sua declaração só é correta na parte referente à catapora. Associar corrupção e processo orçamentário não é exibição de preconceito. É mero reconhecimento de um fato rotineiro e identificável a olho nu.

¿É preciso modificar a forma de elaboração do Orçamento da União, peça básica do controle democrático do dinheiro público¿, escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em artigo publicado no dia 3 no Estado. ¿Nosso Orçamento é obscuro, sujeito a troca de favores e interesses, numa interação às escondidas entre a burocracia federal, os membros da Comissão de Orçamento e os interessados diretos nos gastos¿, acrescentou. Segundo ele, o processo gera a ¿podridão dos mensaleiros¿, a promiscuidade entre empreiteiras, parlamentares e funcionários ¿e torna a corrupção, mais do que endêmica, sistêmica¿.

Não se trata só de corrupção. A maior parte dos processos é defeituosa. Invariavelmente a receita é reestimada, sempre para mais, durante a tramitação da proposta orçamentária no Congresso. A reestimativa se destina, em geral, a acomodar os gastos pretendidos por parlamentares. Deixa-se de lado a preocupação com a segurança financeira, mas essa não é a única distorção. A qualidade da maior parte das emendas é conhecida. É parte do folclore político brasileiro, tanto pelo atendimento de interesses privados, legais e ilegais, quanto pela irracionalidade administrativa do sistema.

Uma das conseqüências do processo é o recurso habitual ao contingenciamento de recursos, nos primeiros meses de cada ano. O Executivo freia a liberação de verbas, à espera de maior segurança quanto à evolução da receita. Esse comportamento pode ser justificado com base em critérios de administração financeira, mas cria oportunidade para uma distorção política. A liberação de verbas para os gastos contemplados nas emendas vira objeto de barganha. A execução do Orçamento é negociada em troca de apoio a projetos e manobras de interesse do governo. A liberação também depende, às vezes, de um trabalho de lobby executado ou patrocinado por prefeitos das cidades beneficiadas pelas emendas.

Esse trabalho de lobby, segundo Mares Guia, seria dispensável, se as verbas fossem liberadas automaticamente. Ele já havia defendido a mudança logo depois de assumir a coordenação política do governo. ¿A emenda¿, disse ele na ocasião, ¿é um instrumento de tremenda eficácia.Temos de fazê-lo funcionar, criar critérios de mútuo respeito. Se você combinou, tem de entregar.¿

Mas o respeito necessário envolve muito mais que essa entrega. É preciso, antes de mais nada, respeitar o dinheiro público e os critérios de eficiência. É preciso respeitar o caráter nacional do Congresso, evitando comprometer o dinheiro do Orçamento em projetos de interesse estritamente municipal. Quando tudo isso for levado em conta, terá sentido a adoção do orçamento impositivo. Por enquanto, o sistema de emendas serve essencialmente para os parlamentares picarem a parte ¿livre¿ do Orçamento como se fosse uma pizza. Cada qual pega o maior pedaço possível, para atender a interesses pessoais, clientelísticos e nem sempre compatíveis com a lei.