Título: Conflitos seguem padrões repetitivos
Autor: Albuquerque, José Augusto Guilhon
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2007, Vida&, p. A27

A crise da USP - que se estende para as outras universidades do sistema estadual paulista e corre o risco de se alastrar por todo o País - precisa ser entendida em suas raízes para que se possa avaliar o alcance de eventuais medidas e o papel dos atores envolvidos em uma possível solução.

Os conflitos na USP têm seguido um padrão rigoroso de endurecimento e violência crescente em anos eleitorais e no primeiro ano de gestão do reitor. O processo invariavelmente se inicia em busca de um pretexto à radicalização desencadeada por pequenos grupos de funcionários e estudantes.

A imensa maioria dos estudantes, funcionários e professores tende a não apoiar, mas se omite, por comodismo, temor de retaliação ou incerteza quanto à proteção de sua integridade pelas autoridades responsáveis.

As autoridades acadêmicas têm sido lenientes, a ponto de, nas três últimas gestões, terem se deixado seqüestrar ou serem impedidas de ter acesso à sede da reitoria. A atitude dos reitores é ambivalente, porque, embora não possam apoiar abertamente os movimentos, não hesitam em tirar partido do conflito para pressionar o governo por mais recursos.

Os atores internos, com exceção da minoria identificada com as lideranças radicais, não se sentem protegidos em sua integridade e em seus direitos e, portanto, tornam-se impotentes. Os atores externos temem a reação corporativa da USP.

E o Executivo prefere se omitir a pagar o alto preço que a capacidade da universidade de influenciar a opinião pública poderia lhe infligir.

Mas a atual crise provocou tal reação de indignação na maioria silenciosa que uma ação enérgica do governo, cobrando da reitoria o cumprimento de seus deveres com relação à ordem legal e à proteção das pessoas e bens sob sua guarda, provavelmente encontraria apoio de grande parte dos professores, estudantes e funcionários. Neste momento, com a invasão transformada em ponto turístico e os invasores em heróis, a ação enérgica do Executivo se torna mais árdua. Mas, ainda assim, é a única opção.

O PADRÃO DA VIOLÊNCIA

Os conflitos opondo entidades representativas da ¿comunidade¿ da USP às autoridades universitárias obedecem a um padrão que se repete nos últimos 15 anos.

Os movimentos anuais de reivindicação na ¿data-base¿ do funcionalismo das universidades estaduais não têm sido suficientes para deflagrar conflitos. Mas o primeiro ano de uma nova gestão reitoral, o primeiro ano de uma nova administração estadual, ou anos eleitorais são, em princípio, desencadeadores de movimentos agressivos.

Conforme a ocasião, os sindicatos (Adusp, dos professores, e Sintusp, dos funcionários) testam a capacidade do novo reitor de manter a ordem, radicalizam o pleito ou buscam estabelecer-se como pólo de poder em administrações às quais estariam ideologicamente ligados (casos da candidatura de Lula à Presidência ou de Marta Suplicy à Prefeitura).

O elemento desencadeador do conflito raramente é a reivindicação trabalhista - ou haveria conflito todos os anos. O primeiro passo é geralmente uma paralisação de advertência, criando um clima que permita a radicalização. Encontrado o pretexto, os sindicatos e, às vezes, o DCE, decidem entrar em greve em reuniões com baixíssima participação e desencadeiam a paralisação parcial da Universidade, vendida à mídia como greve geral.

AS RAZÕES DO SUCESSO

Por que entidades com baixíssimo grau de participação, pouco poder de mobilização e pouca legitimidade conseguem desencadear greves que paralisam, ainda que parcialmente, as universidades paulistas? Desencadeando ações com poucos participantes, mas alto grau de violência e, portanto, de visibilidade.

Se as ações não encontram resistência e tendem a perdurar, o professorado, que é chave para o sucesso do conflito, é atingido por três reações: parte vê, no ¿sucesso¿ da ação, um incentivo para apoiar movimentos radicais com que concordam em tese; parte se omite e espera se beneficiar com eventuais vantagens; e parte é amedrontada pela intimidação que não encontra, nas autoridades, qualquer limite.

Assim, cerca de 30 peões armados de porretes e 20 estudantes decididos a acampar fecham a prefeitura e desestabilizam a reitoria. Esta é a terceira gestão em que a autoridade máxima da USP é seqüestrada dentro da reitoria ou impedida de entrar na administração, sem contar invasões do Conselho Universitário, agressões a alunos e funcionários e intimidação de professores.

As conseqüências para os autores dessas ações delinqüentes têm sido nenhuma.

Ainda assim, raramente a paralisação é total ou atinge a maioria dos professores e alunos, restringindo-se a algumas unidades em que alunos e professores são mais agressivos ou inclinados à greve, independentemente da motivação: FFLCH, ECA, Educação. As unidades menos propensas à adesão tornam-se alvo de violência por parte de militantes e, dada a falta de apoio da reitoria, suas direções ficam limitadas em sua capacidade de reação.

Por inércia - mais do que por mobilização ou ação militante -, uma greve minoritária inviabiliza o funcionamento da universidade. A maioria dos alunos fica em casa aguardando os acontecimentos. A maioria dos professores também fica em casa, recolhe-se às suas salas de trabalho e leva uma vida acadêmica quase normal, com exceção das aulas de graduação. Os funcionários também permanecem majoritariamente alheios. E a administração funciona precariamente.

Poupada no passado, a reitoria tem tido, nas últimas três gestões, seu funcionamento inviabilizado por longos períodos, em uma distorção da idéia de interlocução entre partes em conflito. As lideranças criam uma situação em que o interlocutor fica destituído de sua condição de parte legítima no conflito e limitado em sua capacidade física de negociar. Lideranças sindicais e estudantis radicais buscam tornar o interlocutor refém como condição para iniciar qualquer negociação. E as reitorias têm se submetido a negociar na posição de refém. Tudo isso ajuda a explicar por que, a partir de 1997, os sindicatos não conseguiram desencadear greves bem-sucedidas - a não ser quando lançaram mão de ações violentas.

A GRANDE OMISSÃO

O que leva autoridades acadêmicas, entidades sindicais e estudantis, alunos, professores, funcionários e até o governo do Estado a contribuírem para um processo que gera conflitos que tendem a radicalizar-se independentemente das circunstâncias, e com alto potencial de violência e desrespeito à ordem legal?

O fator mais relevante é o comportamento das autoridades universitárias, particularmente da reitoria. Sua passividade diante de uma cultura da violência e do menosprezo pela ordem legal, sua omissão diante de ações delinqüentes, sua disposição para ser destituída de sua autoridade, sua prevaricação diante do dever legal de salvaguardar pessoas e propriedades sob sua responsabilidade - tudo isso reforça, nas lideranças radicais, o sentimento de justeza de sua estratégia. E entre estudantes, professores e funcionários, difunde a mensagem de que vale mais cuidar de seus interesses e segurança do que ficar à mercê da agressão de uns poucos.

O que motiva as autoridades acadêmicas a agirem assim é sua relação ambivalente com lideranças das entidades sindicais e estudantis. As ações reivindicatórias delas são importante fator de pressão orçamentária sobre o Executivo - e suas representações são parcela não desprezível do colégio eleitoral dos candidatos a reitor.

O último aumento da quota das Universidades sobre o ICMS, para os atuais 9,57%, foi concedido mediante reivindicação dos reitores, em ano eleitoral, a pretexto de debelar uma greve longa e violenta. Todas as universidades estaduais têm administrado, de maneira oportunística, pressões por expansão do ensino de graduação como instrumento para alcançar suplementação orçamentária extra-quota do ICMS. E a reivindicação da construção de centenas de apartamentos feita no atual conflito, por exemplo, dificilmente será atendida sem suplementação extra-quota, já que a assistência social aos estudantes da USP já representa 20% de sua verba de custeio, valor que representa a abertura de 21.600 vagas no ensino superior privado!

As lideranças sindicais das universidades estaduais são movidas principalmente por motivações ideológicas e compartilham a visão de que ações diretas - greves, invasões, manifestações - afetam a correlação de poder entre revolucionários e a sociedade ¿burguesa¿ e apontam no caminho do socialismo, sem levar em conta a satisfação das reivindicações. É o ¿saldo organizacional¿. Quanto mais incontornável o impasse, maior capacidade futura de mobilização e maior o terreno conquistado ao inimigo de classe.

Entre os professores, apenas um pequeno grupo se alinha com as lideranças sindicais. A maioria não concorda, mas se omite e se recolhe às suas pesquisas. Uma minoria - mas que é maioria nas unidades que raramente aderem às greves - mantém altivamente o ensino, pelo menos enquanto não é impedida. Entre funcionários, o comportamento é análogo. Mas deve-se levar em conta que seu sindicato (Sintusp) costuma retaliar com violência aqueles que não seguem suas diretrizes. Entre estudantes, as unidades que não aderem às greves sofrem ações intimidatórias.

No Executivo, prevalece uma política de não-envolvimento desde que uma manifestação de professores universitários e da rede pública culminou em confronto, no governo Quércia, em ano eleitoral. Um dos fatores da derrota do PMDB, o incidente levou o Executivo a conceder autonomia orçamentária às universidades.

O Executivo também teme o poder de vocalização das Universidades, particularmente da USP, devido à sua capacidade de mobilizar a opinião pública. Toda a elite paulista estudou ou ensina na USP, por assim dizer. Isto explica por que, mesmo diante do desrespeito à ordem legal , o Executivo tende a se omitir, sem chamar às falas as autoridades universitárias.

O DEVER DO GOVERNO

No contexto descrito, as iniciativas vindas de fora são mal recebidas e provocam uma reação defensiva e corporativa. Por outro lado, há poucos incentivos internos para uma reação contrária à tendência populista. Assim, os atores internos dificilmente desencadeariam uma reação contra uma situação que consideram insatisfatória, mas cuja mudança implicaria um custo maior do que o desconforto atual. Para correr esse risco, precisariam de garantias externas de que seriam apoiados pela sociedade e, principalmente, pelo Estado.

Os atores externos, especialmente o Executivo, optam por uma cautela extrema, equivalente à omissão. Para correr o risco de uma intervenção, o Executivo gostaria de ter certeza de contar com apoio interno. Mas esta condição poderia ser satisfeita se o Executivo desse mostras claras de que fará prevalecer o Estado de Direito e protegerá cidadãos ameaçados pelas ações violentas.

No caso presente, já há apoio interno para uma ação de restabelecimento da ordem legal. Pela primeira vez desde a instauração do regime militar, em 1964, a comunidade acadêmica da USP rompe publicamente a solidariedade corporativa para expressar seu repúdio ao radicalismo e à violência de um movimento interno. Cerca de 1.700 professores de diversas unidades se manifestaram, em um abaixo-assinado eletrônico, pela desocupação imediata da reitoria, o que representa oito vezes o número de participantes da assembléia sindical que decretou greve dos professores em solidariedade aos invasores.

Resta saber quais atores externos poderiam representar esse papel. Os primeiros ¿mediadores¿ mobilizados fracassaram inteiramente, pela razão simples de que um mediador precisa ser aceito como tal por ambas as partes. Os invasores não reconhecem sequer a reitoria como interlocutora - e quem se julga em posição de força dispensa mediação. E o poder moral do Legislativo sobre os invasores é próximo de zero. Os legisladores podem muito pouco nesta situação, porque a suposta posição de força não está do lado do Executivo.

Assim, a menos que a sorte favoreça uma debandada espontânea e pacífica dos invasores, o poder público terá que intimar a reitoria a cumprir seu dever de manter a ordem legal e salvaguardar as pessoas e os bens sob sua responsabilidade. O Executivo é o único poder com capacidade para exercer essa pressão sobre a autoridade acadêmica e agir para conter o conflito dentro de limites racionais.