Título: Um fiasco teatral
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/06/2007, Notas e Informações, p. A3

O Brasil poderá perder duplamente, se fracassar de uma vez a Rodada Doha de negociações comerciais - hipótese altamente provável, depois do fiasco da reunião ministerial em Potsdam, na Alemanha. Perderá, em primeiro lugar, por ter jogado quase todas as fichas na rodada global, negligenciando bons acordos bilaterais. Perderá, também, se não conseguir reativar a negociação de livre-comércio entre Mercosul e União Européia (UE), o próximo passo anunciado há poucos dias pelo chanceler brasileiro Celso Amorim. ¿Podem esquecer a bilateral¿, disse ontem a comissária do bloco europeu para Agricultura, Mariann Fischer Boel, a um grupo de jornalistas brasileiros, depois de encerrado o encontro do Grupo dos 4 (G-4), formado por Brasil, Índia, Estados Unidos e UE. Nada haveria para discutir, segundo ela, se o bloco sul-americano mantivesse a posição defendida pelo ministro brasileiro.

O chanceler Celso Amorim e o ministro de Comércio da Índia, Kamal Nath, representavam no encontro, embora sem mandato formal, as posições das economias em desenvolvimento. Programado para terminar no sábado, o encontro acabou dois dias antes, quando os ministros brasileiro e indiano decidiram abandonar a discussão. Segundo Amorim, não mais seria possível negociar depois da proposta americana sobre os subsídios à agricultura. Com essa atitude, forneceram a europeus e americanos o pretexto para culpar brasileiros e indianos pelo fracasso de mais um esforço para salvar a Rodada Doha.

A proposta americana era de fato muito ruim. Segundo a negociadora dos Estados Unidos, Susan Schwab, seu governo poderia reduzir os subsídios até US$ 17 bilhões anuais. Na prática poderia ser um corte de ar. No ano passado, as subvenções à agricultura americana totalizaram US$ 12 bilhões, por causa dos bons preços internacionais. Com o teto proposto, ainda sobraria muito espaço para manter uma política nociva às condições de concorrência.

Amorim tinha bons motivos para rejeitar a oferta e em relação a isso representou corretamente os interesses dos emergentes - alguns, como Brasil, Argentina e Uruguai, produtores competitivos, mas submetidos, até agora, a condições injustas de concorrência.

Americanos e europeus acusaram brasileiros e indianos, em contrapartida, de haver entravado a discussão por não terem apresentado concessões suficientes para o comércio de bens industriais e para os serviços. O abandono da reunião pelos delegados do Brasil e da Índia pode conferir credibilidade a essa acusação. Cada grupo tentará jogar a culpa no outro por mais este fiasco, num exercício politicamente desgastante e sem nenhuma utilidade para a promoção do comércio.

Não há como censurar os ministros Celso Amorim e Kamal Nath por cobrar uma oferta melhor dos americanos no debate sobre agricultura. Mas também não há como aplaudir o abandono da reunião dois dias antes de terminar o prazo combinado.

Lá mesmo, em Potsdam, um funcionário brasileiro fez um comentário instrutivo a respeito do assunto: a reunião terminou quando parecia estar começando. Foi encerrada quando as cartas ainda estavam sendo postas sobre a mesa e faltava muito para o fim do jogo.

Se o ministro Amorim e seu colega indiano tentaram um lance dramático para dobrar os interlocutores, cometeram um grave erro. Os negociadores Susan Schwab e Peter Mandelson não são ingênuos e, além disso, representam o poderio não de quaisquer países, mas dos Estados Unidos e da União Européia. Mas pode-se pensar noutra explicação. Terá havido uma tentativa, principalmente do ministro brasileiro, de fazer um jogo de cena para o público do Terceiro Mundo?

Em vista do currículo recente da diplomacia brasileira, a hipótese é plausível. Mas um lance desse tipo só pode impressionar uma parcela muito restrita daquele público. Para muitos governos, empresários e agricultores do mundo em desenvolvimento, a Rodada Doha tem enorme importância e não se pode comprometê-la com um gesto teatral. Nesse caso, terá sido um fiasco teatral.

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, deve tentar mais uma vez, na próxima semana, juntar os cacos da Rodada Doha. Se não conseguir, vários países terão a alternativa de acordos bilaterais já concluídos ou em negociação. O Brasil terá de começar quase do zero.