Título: Bloco precisa ter voz clara
Autor: Ash, Timothy Garton
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/06/2007, Internacional, p. A16

É agradavelmente fácil acompanhar o desenvolvimento da União Européia pela mídia americana. Agradavelmente fácil porque simplesmente não há nada sobre o assunto. As eleições francesas e a separação de Ségolène Royal e François Hollande estão lá. O último comentário de Tony Blair também. E a comida e a moda da Itália estão presentes em abundância nas seções de variedades. Mas e a UE, enquanto comunidade política ou protagonista global? Esqueçam. Provavelmente, nem mesmo os leitores bem informados dos jornais americanos, por dentro das últimas notícias do Iraque e da Palestina, sabem que a UE realiza um encontro de cúpula crucial que determinará sua capacidade de ser a mais importante parceira estratégica dos Estados Unidos nas próximas duas décadas.

Sem dúvida, este comentário é dirigido, em parte, à mídia americana. Mas também é o reflexo de uma realidade na qual, para a maior parte do mundo, a UE não importa muito - e certamente importa menos do que ela imagina. Há poucos meses, sentei-me num restaurante no Cairo e ouvi um dissidente egípcio expressar, revoltado, uma idéia familiar. No que diz respeito a seu impacto sobre a política egípcia, disse ele, ¿a Europa não é nada. Nada!¿

Em 2009, quando os EUA tiverem um novo presidente, a UE precisará estar pronta para falar com uma voz que realmente seja ouvida não só em Washington e no Cairo, mas também em Moscou, Pequim e Nova Délhi, velhos e novos pólos de um mundo multipolar que o velho Ocidente não será mais capaz de dominar. A pergunta provavelmente apócrifa de Henry Kissinger - vocês me dizem ¿Europa¿, mas que número devo discar? - finalmente precisa de uma resposta. Nem os países europeus mais poderosos, Alemanha, Grã-Bretanha e França, são grandes o bastante para fazer diferença sozinhos. Vimos isso na guerra no Iraque e vemos hoje nas relações com a Rússia. No papel, a UE é o maior bloco dos ricos e livres depois dos EUA: seu igual em tudo, exceto no poder militar. Nas conversações sobre comércio e ajuda, a UE também age desse modo e é tratada desse modo. Mas não na política externa.

Este é o ponto mais importante que o novo tratado da UE deveria cobrir. É vital que as mudanças institucionais propostas permitam que a União Européia, com 27 membros ou mais, chegue a decisões com mais coerência, implemente-as com mais eficácia e tenha uma voz clara no mundo. Todo o resto é uma distração.

Felizmente, não dependo só da mídia americana para me informar. Posso usar o telefone e o e-mail para receber generosos vazamentos de chancelarias da Europa. Acompanhar uma dessas negociações da UE estando na Califórnia é uma experiência meio surreal. Somos lembrados de como as coisas são peculiares. Nos dias anteriores a uma reunião de cúpula, a intriga febril e maquiavélica entre os países membros lembra um grupo de estudantes jogando um campeonato de vários dias de Diplomacia - jogo de tabuleiro que tem como cenário a diplomacia da força na Europa do século 19. Só que os atuais objetivos da intriga nacionalista não são conquistas territoriais militares, e sim misteriosos ajustes legais e burocráticos.

Minhas fontes dizem que os maiores obstáculos prováveis a um acordo sobre os contornos de um novo tratado (será preciso negociar os detalhes numa conferência intergovernamental no segundo semestre) são os holandeses, poloneses e britânicos.

A Holanda, uma das duas nações que rejeitaram o tratado constitucional anterior num referendo, apresenta uma série de limites endossados por seu Parlamento. Meu pressentimento é que, nas primeiras horas de sábado e com um pouco de sangue no tapete, será alcançado um acordo sobre suas exigências.

Os gêmeos nacionalistas conservadores da Polônia, o presidente Lech Kaczynski e o primeiro-ministro Jaroslaw Kaczynski, brandem sabres em seus altos cavalos na briga em torno do peso dos votos da Polônia e da Alemanha no conselho de ministros, que toma a maioria das decisões importantes. A Polônia saiu-se muito bem no último tratado da UE, o de Nice, ainda em vigor. Desde então, a diplomacia alemã para a UE persegue um objetivo especificamente nacional: mudar o sistema para que a Alemanha tenha mais votos, refletindo o fato de que sua população é a maior de todas. Agora é proposto um sistema de maioria dupla, exigindo a maioria tanto dos países membros quanto das populações.

Os gêmeos Kaczynski, trancados que estão numa mentalidade do século 19, reclamam que a Alemanha sairia ganhando e a Polônia sairia perdendo nesse sistema. Eles dizem que estão dispostos a ¿morrer¿ pela proposta que defendem e afirmam que ¿não existe plano B¿. Será que eles vão assumir o papel de Margaret Thatcher? Eu jamais subestimaria a teimosia polonesa.

Depois de resistir à ocupação nazista e soviética, enfrentar uma pequena intimidação verbal em Bruxelas é brincadeira de criança. Mas é possível algum acordo também nessa área - talvez deixando para a conferência intergovernamental a decisão sobre os pesos dos votos.

Restam os gêmeos políticos da Grã-Bretanha, Tony Blair e Gordon Brown, que nesta negociação estarão intimamente unidos pela última vez. Não convencido da necessidade prática de muitas das mudanças propostas, decidido a evitar um referendo e temendo ser atacado pelos jornais eurocéticos de grande circulação, como o Daily Mail de Paul Dacre e o Sun de Rupert Murdoch, o Tesouro de Brown tem traçado incontáveis limites. Não deve ser concedido nenhum novo poder significativo. A Grã-Bretanha precisa ter mais oportunidades de ficar de fora, como por exemplo no campo da Justiça e dos assuntos internos. A Carta de Direitos Fundamentais tem de ser excluída do tratado e não pode influenciar a lei britânica.

Tristemente, até a chancelaria britânica contribuiu para dificultar as coisas, sugerindo que o proposto ministro do Exterior da UE não seja chamado de ministro do Exterior, não presida o conselho de ministros do Exterior nacionais e não conte com o apoio do planejado ¿serviço de ação externa¿.

Isso castraria totalmente o cargo - o que seria, a meu ver, o resultado mais importante que o tratado poderia oferecer. O título de ministro do Exterior não tem importância e, na verdade, é enganador (ministros são nacionais). No entanto, para que a voz da Europa seja ouvida no mundo, é vital que, a partir de 2009, a UE tenha um presidente permanente do Conselho Europeu (um cargo para o qual Nicolas Sarkozy teria proposto Tony Blair) e este novo líder de assuntos externos, que poderia ser chamado, por exemplo, de secretário-geral, um título que ecoa os secretários-gerais da Otan e da ONU. Então os sucessores de Kissinger teriam finalmente um número para o qual discar.

Se a Grã-Bretanha, a Polônia ou a Holanda abortarem esse acordo agora, uma coisa será certa: quando chegar o novo começo em 2009, a UE ainda não existirá nas mentes americanas. A Europa não terá uma voz reconhecida e escutada no mundo. E eu, como muitos outros, voltarei a atenção para a China ou para a Índia. Pelo menos elas terão algum rumo.