Título: O Senado sangra
Autor: Kujawski, Gilberto de Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Palavras do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE): 'Não precisa do apelo piegas de que o presidente (do Senado) está sangrando, para encerrar o caso. Quem está sangrando é o Senado.'

O Senado sangra, e talvez seja bom que sangre um pouco. Na antiga medicina, sempre que alguém caía doente, os médicos sangravam o paciente, na esperança de que assim ele se recuperasse logo. Na 'sangria capilar', uma das variedades de sangria na época, eram usadas sanguessugas para extrair o sangue. Como o Congresso tem grande reserva de sanguessugas, a sangria medicinal não seria problema. Quem sabe a presente sangria sirva para a depuração do Senado, extraindo o sangue ruim e deixando o sangue bom.

'Não vamos aceitar que a operação epitáfio tenha êxito', brinca o deputado federal Chico Alencar, do PSOL-RJ. O nome do senador maranhense Epitácio Cafeteira, grande amigo de Sarney, e relator do processo-farsa 'contra' Renan Calheiros, tem servido de piada em todo o Brasil, graças à fácil associação de seu prenome com a inscrição tumular denominada 'epitáfio', como querendo atribuir ao honrado senador ares sepulcrais de coveiro da instituição. Que desrespeito e injustiça! Melhor e mais inocente seria lembrar aquelas cafeteiras da minha infância, trabalhadas como objetos de arte, de impressionante efeito decorativo, e que eram produzidas por finos artesãos na região de Franca e Batatais. Que diferença com os dias de hoje, em que se compra uma cafeteira a preço vil em qualquer supermercado, objetos toscos e prosaicos desses fabricados em massa e em série. Já não se fazem cafeteiras como antigamente. As cafeteiras perderam qualidade e valor, são descartáveis como xícaras ou copos de plástico.

'Para que serve o Senado?', indaga o jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo. 'O Renangate é marcado por uma sucessão de escárnios. Primeiro caiu nas mãos de um político semi-aposentado, desprezado em seu partido e ávido por encontrar uma sinecura para seus filhos: o corregedor (sic) Romeu Tuma (DEM-SP). (...) Pós-Tuma veio o senador da floresta e sem voto, Sibá Machado (PT-AC). É o suplente do Conselho de Ética. Lançou-se com avidez à tarefa de absolver Renan. É ajudado por Epitácio Cafeteira (PTB-AM), relator do processo e ícone do velho Brasil. A dupla não quer julgar. Quer salvar' (Fernando Rodrigues, Folha de S.Paulo, 18/6).

Todo esse escárnio do Renangate, esta desmoralização do Senado e do Congresso, nos faz lembrar o que foi o Senado em Roma, nos bons tempos de Roma, ao início da República. Contamos com o testemunho do supremo historiador de Roma, o alemão Theodor Mommsen (1817-1903), que revolucionou o estudo da Antiguidade romana. ('Ninguém é superior a Mommsen', lembro-me de ouvir dizer um velho e erudito mestre na PUC.) Eis os termos com que aquele historiador se refere ao Senado romano, modelo e ideal desta instituição em toda a História do Ocidente.

'O Senado nos aparece como a expressão mais nobre da nacionalidade romana. Possuiu as mais altas virtudes: lógica e prudência política, unidade de visão, amor à pátria, plenitude de poder e domínio de si mesmo; foi, verdadeiramente, a assembléia mais ilustre de todos os tempos e nações; uma assembléia de reis, como se disse; soube unir o desinteresse republicano à energia irresistível do despotismo. Jamais povo algum foi representado tão poderosa e nobremente como o povo romano. Não desconheço que, predominando em seu seio as aristocracias do sangue do dinheiro, pudessem arrastá-lo com freqüência a servir a seus interesses egoísticos; por causa disso extraviou-se muitas vezes, apesar de toda a sua ciência e energia, por caminhos que não conduziam ao bem público; mas em meio às lutas intestinas saía o grande princípio da igualdade civil perante a lei, tanto no respeito aos direitos como aos deveres; estando então aberta para todos a carreira política, ou melhor dizendo, a entrada no Senado; marcou o advento da concórdia entre o Estado e a Nação, assim como os êxitos mais brilhantes na guerra e na política' (Theodor Mommsen, História de Roma).

Depois de explicar que, graças ao Senado, as diferenças entre as classes já não se manifestavam por ódios arraigados, aquele bruxo da historiografia conclui: 'Deste modo, ajudando todas as causas, pôde Roma fundar no Senado, e fazer que durasse mais tempo do que em outros povos, a mais grandiosa das construções humanas: um governo popular a um só tempo sábio e afortunado.'

É de arrepiar a evocação do Senado romano por Mommsen. Depois desta visão grandiosa, indagamos: quem no Senado brasileiro seria herdeiro à altura da tradição do Senado latino? Marco Maciel, Jefferson Peres, Pedro Simon, Jarbas Vasconcelos, Eduardo Suplicy? Nomes contados correspondendo aos dedos de uma só mão. Não será muito pouco?

Para reforçar sua liderança no combate ao Renangate seria urgente que os melhores senadores se somassem a outros nomes da Câmara de Deputados, como o combativo Fernando Gabeira (PV-RJ), que já derrubou Severino Cavalcanti com aquela memorável interpelação a que todos assistimos graças à televisão, além de Chico Alencar (PSOL-RJ), o presidente do PPS, Roberto Freire, Arnaldo Madeira (PSDB-SP) e outros igualmente inconformados. Seria preciso arregimentar frente única contra o escárnio protagonizado pela Comissão de Ética (sem ética nem estética), contando com a aliança da imprensa escrita e eletrônica e, notadamente, com o poderoso influxo da internet, congestionada de e-mails e textos contra a pouca-vergonha que é esta união dos celerados para absolver Renan Calheiros. O presidente do Senado não deveria ser absolvido. Deveria ser arquivado para sempre, ser remetido ao arquivo morto com um epitáfio (agora, sim) digno de sua figura que pouco a pouco se vai apagando como uma sombra que não deixará saudades.