Título: As cotas raciais
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2007, Notas e Informações, p. A3
No mesmo dia em que a Universidade de Brasília (UnB) reconheceu ter cometido um grave erro ao classificar como branco um vestibulando cujo irmão gêmeo fora classificado como negro para concorrer ao vestibular favorecido pelo sistema de cotas, a secretária de Políticas de Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, voltou a fazer uma ardorosa defesa da criação de vagas para estudantes negros nas instituições públicas de ensino superior, com o objetivo de reduzir a discriminação racial e a desigualdade social no País.
Além de serem gêmeos univitelinos, gerados a partir do mesmo óvulo, os dois irmãos têm características físicas praticamente iguais, o que ficou evidenciado pelas fotos fartamente publicadas na imprensa. O equívoco da UnB deixou clara a fragilidade dos mecanismos de seleção de cotistas. Assim que a instituição reconheceu a falha, o governo se mobilizou para tentar evitar a desmoralização de uma de suas principais bandeiras: o projeto de lei que prevê a reserva de 50% das vagas das universidades públicas para negros e índios e tramita arrastadamente no Congresso.
Mais uma vez, o governo agiu demagogicamente. Em vez de concentrar sua atenção na essência do problema da desigualdade social, a péssima qualidade do ensino básico da rede pública, que nega aos alunos egressos dos setores mais desfavorecidos da sociedade a formação necessária para que possam se emancipar economicamente, a secretária Matilde Ribeiro voltou a entoar a ladainha das políticas de ação afirmativa. ¿A forma como foi feita a construção de nossa nação traduz hoje por que os negros (...) são os mais pobres entre os pobres. É muito difícil separar a pobreza da discriminação racial¿, concluiu.
Inspirada no debate político americano dos anos 60, a discussão sobre cotas raciais chegou ao Brasil ideologicamente enviesada e foi encampada pelo governo com propósitos claramente eleiçoeiros. O Executivo parte da idéia de que o princípio jurídico da igualdade é uma simples cortina de fumaça para ocultar preconceitos raciais e diferenças sociais. Daí a necessidade de amparar os oprimidos, reconhecer os direitos dos discriminados e promover a auto-estima racial entre eles, como propõe a secretária Matilde Ribeiro.
O problema dessa idéia é que, ao tentar justificar medidas de inclusão social com base na premissa de que a raça de uma pessoa define seus interesses, ela tende a disseminar o racismo. Com isso, o que parece ser um eficiente remédio na prática se revela um perigoso veneno, tais os rancores que tende a gerar. A experiência revela que, na maioria dos países onde o sistema de cotas foi adotado, separando os estudantes por critério de cor, ele agravou as tensões sociais, em vez de coibi-las, e comprometeu o saudável princípio da meritocracia no sistema de ensino.
A definição de ¿raça negra¿ já foi há muito tempo desmentida pela ciência. E o próprio conceito de raça há décadas é rechaçado pelos países desenvolvidos, seja por induzir os preconceituosos ao julgamento genético, seja por dar a tiranos e ditadores argumentos que lhes permitem justificar ideais de eugenia e raça pura. No Brasil, a Constituição de 88, como as anteriores, não reconhece a idéia de raça como critério de distinção entre os cidadãos, referindo-se a ela somente para dizer que é crime discriminar as pessoas por critérios raciais. Portanto, ao fundamentar a política de cotas com base na idéia de raça, o governo está na contramão da História e em rota de colisão com o capítulo dos direitos e garantias fundamentais da Carta que jurou cumprir.
Na realidade, não há receitas milagrosas para a redução das profundas desigualdades sociais que marcam a sociedade brasileira. A inclusão social e o combate à exclusão econômica, como mostram os países que venceram esse desafio, são processos que só se tornam eficazes quando as escolas se revelam capazes de fornecer uma educação básica eficiente.
Insistir no populismo da política de cotas raciais, não associando obtenção de vagas a critérios de desempenho escolar, como vem fazendo o governo, é uma forma de disseminar a intolerância e de subverter o princípio da meritocracia, que deveria ser soberano em todas as instituições públicas que se empenham por oferecer ensino de qualidade e pesquisa de ponta no Brasil.