Título: Deboche à Nação - 2. A missão
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/06/2007, Espaço Aberto, p. A2
¿Nas democracias, a profecia fala mais alto do que a memória.¿ Com esta frase, pronunciada em seu discurso de posse na Seplanejalopra (Secretaria de Planejamento de Longo Prazo), ex-Sealopra, de que democracia o filósofo Mangabeira estaria falando? Nas verdadeiras democracias não será a memória dos povos, com todos os seus valores - éticos, históricos, culturais - que deve falar mais alto? Ou as nações devem fazer uma tabula rasa axiológica, eliminando todos os princípios que cultivaram e acumularam durante sua existência, para ¿inventar¿ do nada (ex-nihilo) um futuro inteiramente imprevisível? Será que deveria ser expurgado da memória das sociedades - em favor das profecias futuristas - aquilo que as motivou a criar instituições, estabelecer regras de convívio, normas de comportamento e tudo o mais que se sedimentou, ao longo dos tempos, como base de construção de uma harmonia coletiva, pela via da democrática administração de conflitos?
Não, a democracia exige memória - pois é nela que estão concentrados seus valores. Os regimes que dispensam a memória - ou se dispõem a lavá-la, vaporizá-la ou desfigurá-la por meio do duplipensar orwelliano - não têm nada de democracia, especialmente se fazem falar mais alto suas grandes profecias, do tipo ¿Reich de mil anos¿. Dispensar a memória significa aniquilar valores. E esta é a condição, segundo o filósofo Mangabeira, para que cheguemos à realização de sua profecia futurista, em que vislumbra o surgir de uma raça superior (de ¿gênios pobres e negros¿), o que expressou, em seu discurso, com esgares de messiânica megalomania que beiravam os sinais de plena alucinação. E aí o conteúdo filosófico se coadunava ao physique du rôle irrequieto, fazendo-o parecer um misto de pregador pentecostal com tribuno baiano e apresentador de circo americano.
Foi por esse processo ¿mágico¿ de eliminação da memória, a qual substituiu por uma só palavra - o termo ¿magnânimo¿, atribuído ao presidente da República -, que o filósofo Mangabeira se sentiu inteiramente dispensado de pedir quaisquer desculpas pelo que tinha dito, há apenas um ano e meio, sobre o chefe de Estado e de governo, quando usou estas precisas palavras: ¿Afirmo que o governo Lula é o mais corrupto de nossa história nacional. Corrupção tanto mais nefasta por servir à compra de congressistas, à politização da Polícia Federal e das agências reguladoras, ao achincalhamento dos partidos políticos e à tentativa de dobrar qualquer instituição do Estado capaz de se contrapor a seus desmandos. (...) Afirmo que o governo Lula fraudou a vontade dos brasileiros ao radicalizar o projeto que foi eleito para substituir, ameaçando a democracia com o veneno do cinismo. Ao transformar o Brasil no país continental em desenvolvimento que menos cresce, esse projeto impôs mediocridade aos que querem pujança. Afirmo que o presidente, avesso ao trabalho e ao estudo, desatento aos negócios de Estado, fugidio de tudo o que lhe traga dificuldade ou dissabor e orgulhoso de sua própria ignorância, mostrou-se inapto para o cargo sagrado que o povo brasileiro lhe confiou.¿
Mas não há como negar que em seu discurso de posse o titular da Seplanejalopra explicou a que veio. Quando disse ¿orientar-se ao futuro é antever e antecipar uma vitória sobre os constrangimentos do presente¿, conseguiu ele expressar, com acuidade filosófica extraordinária, a doutrina do despudor explícito que caracteriza o ¿momento mágico¿ da política brasileira, que vivemos. Momento mágico em que ninguém mais se constrange com coisa alguma, em que tudo o que vale num dia deixa de valer no outro, e em que vêm à tona as argumentações mais estapafúrdias, as defesas das propostas mais indecentes, as cumplicidades em relação aos atos mais aberrantes, sem que ninguém mais considere isso uma agressão à inteligência do próximo, quando o que está em jogo é conquistar ou preservar no futuro, a qualquer custo, as benesses e prebendas usufruídas no presente - muito mais se se trata da cadeira dirigente de um Poder.
Na verdade, o filósofo Mangabeira se revela o grande teórico da Ética na Política destes tempos de mensalão, sanguessugas, hurricanes, navalhas, xeque-mate, custeios de encargos extraconjugais por empreiteiras, negócios com gado que vale ouro e práticas como as tão bem descritas pelo mestre Juca de Oliveira e interpretadas pela magnífica Bibi Ferreira, na demolidora comédia Às Favas com os Escrúpulos. Estava faltando quem soubesse teorizar e fazer o planejamento filosófico da falta de escrúpulos presente e futura da sociedade brasileira. Pois, se não se planejar com o devido cuidado, hoje, qual será a Ética na Política brasileira daqui a alguns anos - digamos, em 2022, quando nossa Independência completará 200 anos -, quem garantirá que preservaremos nossa rica flexibilização moral atual, o nosso talento para os juízos dinâmicos, que nos fazem em apenas um ano e meio mudar a idéia a respeito de um governo que ¿impôs a mediocridade aos que querem pujança¿, para a de um governo que cumpre ¿a profecia do casamento da pujança com a ternura¿? E sem o trabalho criterioso dessa pasta ministerial dedicada ao futuro - a nova Seplanejalopra -, quem garantirá que estaremos livres, num futuro próximo, de um súbito ataque de vergonha na cara, capaz de comprometer toda a dinâmica da política contemporânea e do ¿momento mágico¿ que estamos, orgulhosamente, desfrutando?