Título: Os desafios de Sarkozy
Autor: Amaral, Sergio
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2007, Espaço Aberto, p. A2
A eleição de Nicolas Sarkozy para a presidência da República francesa e, em seguida, a vitória de sua coligação nas eleições legislativas introduzem significativas transformações no cenário político francês, com conseqüências para os rumos da Europa.
A elite dirigente francesa já dava sinais de esgotamento. Mais do que um antagonismo entre direita e esquerda, o que se evidenciava era um conflito de gerações. No encontro com jovens, perante as câmeras de televisão, sobre o referendo para a Constituição Européia, o então presidente Jacques Chirac fez uma longa peroração sobre os valores da França, a herança do gaullismo e a necessidade de união ante o poderio norte-americano. Nos debates, uma jovem estudante limitou-se a perguntar ao presidente se não teria algo de concreto a dizer aos franceses. A geração formada sob a influência de Charles de Gaulle, que contou com personalidades políticas dominantes, como Valéry Giscard d'Estaing, François Mitterrand e Chirac, havia perdido a conexão com as aspirações da França moderna e sobretudo com os mais jovens. Hesitava sobre o que propor para fazer frente aos desafios do mundo globalizado, à pressão competitiva dos países de mão-de-obra barata, à imigração e ao desemprego.
De um lado, o governo prometia defender a economia contra os males da 'délocalisation'; de outro, o próprio presidente chefiava missões empresariais à China, para estimular os industriais franceses a investir nesse importante mercado. A França parecia dividida entre as reformas exigidas pela modernização da economia e a manutenção das legítimas conquistas de bem-estar social da sociedade. Experimentava um indisfarçável mal-estar social, ilustrado por dezenas de revoltas na periferia das grandes cidades.
Os desafios não são novos, fáceis nem exclusivos da França. Mas a França parecia hesitar mais do que seus vizinhos para formular uma resposta adequada às novas realidades. As dificuldades comuns à economia globalizada eram agravadas pelo alargamento europeu e pela emergência da China. Todos sabiam que a ampliação da Europa, dos 15 para os 25, traria novas ameaças, entre as quais a imigração de trabalhadores e a proliferação de produtos do Leste Europeu. Mais do que isso, o que vem ocorrendo são as duras penas da convergência dos padrões salariais. Como bem mostrou o professor José Pastore numa série de estudos, o salário médio por hora na Europa Oriental ainda é da ordem de US$ 4. Na Europa dos 15, está em torno de US$ 20. O efeito desse desnível é um penoso dilema para empresas e governos: reduzir salários nominais ou benefícios sociais, ou ambos, ou perder competitividade e assistir ao desemprego crônico e à emigração de empresas.
Diante deste cenário, o novo presidente francês se apresenta como um revolucionário. Como um agente de mudanças, após 'anos de estagnação'. É o novo contra o velho, esteja ele à direita ou à esquerda. A lista de propostas é ambiciosa: mais trabalho, menos impostos, o respeito à lei. Serviço mínimo nos transportes públicos em caso de greve. Revisão das 35 horas, reforma das aposentadorias e da representação nos sindicatos. Mais rigor contra a imigração ilegal.
As diferenças em matéria de política externa não são menores. Sarkozy poderá qualificar a herança gaullista de uma França que se percebe como um contraponto - ou articulador de um contraponto - ao poder norte-americano. Pôr em questão as verdades estabelecidas ao longo de mais de 40 anos de diplomacia no Oriente Médio e na África. Em relação aos Estados Unidos, suas idéias são claras: 'Não preciso me justificar pelas afinidades que tenho com a maior democracia do mundo.'
A questão que se coloca para a França não está em saber o que Sarkozy pretende fazer - pois já disse - nem se vai tentar fazer -, pois é suficientemente determinado para buscar executar o que anunciou. A questão está em saber se conseguirá fazer o que disse.
As dificuldades são grandes e conhecidas. Alain Juppé, primeiro-ministro de Chirac ao início de seu primeiro mandato, tentou levar adiante um programa de reformas em alguns aspectos semelhante. Em poucos meses sua popularidade despencou de 60% para 30%. Sarkozy terá a enfrentar os imigrantes, os sindicatos e os estudantes, com suas intermináveis manifestações de rua. As resistências serão grandes. O segundo turno da eleição legislativa deu ao governo uma maioria parlamentar menor que a de Chirac. Tony Blair é uma de suas inspirações, talvez a mais marcante. Mas, diferentemente de Blair, Sarkozy não teve antes dele uma Margaret Thatcher.
De outro lado, no entanto, a França parece estar madura para mudar. Sarkozy é jovem, tem determinação em seus propósitos. Tem firmeza. Mais do que tudo, recebeu um mandato inequívoco nas urnas. Por fim, a oposição está dividida, sem uma clara visão de futuro. Quem representa o Partido Socialista: Dominique Strauss-Kahn, Ségolène Royal ou Laurent Fabius?
A eleição de Sarkozy denota uma mudança na França e sinaliza novos rumos para a Europa. Em menos de dois anos, as três principais potências européias terão elegido novos dirigentes: Angela Merkel, na Alemanha, em dezembro de 2005; agora, Sarkozy; e, dentro de algumas semanas, Gordon Brown, na Grã-Bretanha. São líderes de uma nova geração e possivelmente de uma nova visão da Europa. Entre o euroceticismo de Brown, o pró-europeísmo de Merkel e o pragmatismo de Sarkozy, a Europa encontrará um novo equilíbrio para redigir com mais realismo as regras de sua ampliação. Para completar, onde necessário, as reformas econômicas que permitam reconciliar a austeridade fiscal com a competitividade. E para empunhar a bandeira do que parece ser uma nova e boa causa do século 21, como mitigar as mudanças climáticas.