Título: Um duelo de morte entre irmãos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2007, Especial, p. H1

Há duas semanas, os palestinos deixaram de lado o conflito territorial que travam há 59 anos com Israel para mergulhar numa guerra interna entre facções rivais pelo controle de segurança da Faixa de Gaza que já deixou mais de cem mortos. O primeiro efeito foi a dissolução do governo de união nacional, formado em março justamente para pôr fim às escaramuças entre as milícias dos dois maiores movimentos políticos palestinos, o Hamas e o Fatah. O temor é que a rusga desemboque numa ampla guerra civil, de conseqüências imprevisíveis.

As diferenças entre as duas facções palestinas são gritantes. De um lado está o grupo fundamentalista islâmico Hamas, o novo poder ascendente na Faixa de Gaza. No outro está o Fatah, movimento secular nacionalista que domina a política palestina desde que seu líder máximo, Yasser Arafat (que morreu em 2004), assumiu o controle da Organização de Libertação da Palestina (OLP) no final dos anos 60. Os conflitos das últimas semanas evidenciam o espectro da divisão de um Estado que, oficialmente, ainda nem existe e agora parece mais distante. De um lado, uma Faixa de Gaza governada pelo Hamas (já chamada de ¿Hamastão¿). Do outro, uma Cisjordânia controlada pelo Fatah (a ¿Fatastina¿).

OBRAS SOCIAIS

Fundado em 1987 pelo xeque Ahmed Yassin, o Hamas começou a arregimentar seguidores menos por seu fanatismo religioso e mais pela ampla rede de serviços sociais que instituiu na Faixa de Gaza, incluindo escolas, creches e hospitais. Naquela época, com o líder Yasser Arafat e a cúpula da OLP exilados, o Hamas passou a exercer a função de protetor dos palestinos em Gaza sob discreta tolerância do governo israelense, interessado em enfraquecer a liderança de Arafat. No entanto, o Hamas ganhou projeção também na Cisjordânia ao ajudar a desencadear a intifada - o primeiro levante palestino contra a ocupação dos territórios por Israel, ainda em 1987.

Desde o início, Arafat viu com reservas a pregação religiosa por trás da ação política do Hamas. As divergências aumentaram quando o Fatah - facção hegemônica na OLP - abandonou o compromisso com a luta armada e reconheceu Israel como parte do processo de paz, no início dos anos 90. Oposto aos acordos de paz de Oslo, assinados por Arafat e Israel em 1993, o Hamas iniciou uma campanha de ataques suicidas a alvos israelenses.

A instituição da Autoridade Palestina (o governo semi-autônomo palestino nos territórios ocupados, sob a presidência de Arafat), em 1994, ajudou a distanciar ainda mais o grupo islâmico da liderança laica palestina. Centralizador, Arafat recusou-se a abrir espaço aos líderes religiosos ligados ao Hamas. Por outro lado, para pressionar Israel e o Ocidente, o líder palestino nada fez para reprimir os atentados suicidas dos grupos fundamentalistas contra alvos israelenses.

A morte de Arafat, em 2004, abriu caminho para a retomada de um processo de paz entre palestinos e israelenses (que se recusavam a negociar com Arafat) e também para a atual disputa entre Fatah e Hamas.

O partido laico saiu na frente com a eleição de Mahmud Abbas, número 2 do Fatah, como sucessor de Arafat na Autoridade Palestina (AP). Empossado, Abbas nomeou Mohammad Dahlan como chefe das forças de segurança da AP na Faixa de Gaza. Dahlan é odiado no território desde 1994, quando foi enviado por Arafat como chefe de segurança do novo governo palestino para conter os líderes do Hamas. Durante dois anos, sob suas ordens, vários dirigentes e militantes foram presos e torturados - muitos deles tiveram sua barba raspada, considerada suprema humilhação para os fundamentalistas.

Dahlan voltou a mostrar a mesma truculência sob o governo Abbas. Como resultado, choques entre milícias do Hamas e do Fatah passaram a ser cada vez mais constantes. Dois fatos ajudaram a acirrar a disputa entre as duas facções. Primeiro, em 2005, a saída unilateral de Israel da Faixa de Gaza. Depois, no ano seguinte, a vitória do Hamas nas eleições legislativas trouxe o grupo islâmico ao poder - para o horror de Israel, EUA e União Européia, que classificam o grupo como terrorista. O Hamas formou um governo, mas teve a ajuda financeira internacional e o repasse da receita de impostos por Israel cortados, por sua recusa em reconhecer o Estado judeu.

A formação de um governo de união entre Hamas e Fatah, em março, deveria pôr fim à disputa. Mas agravou ainda mais o conflito, pois nenhuma das duas facções aceitou desarmar suas milícias. Agora, pela primeira vez na luta dos palestinos para a criação de um Estado, surge a real possibilidade da criação de duas Palestinas, em vez de uma.

A estrutura da sociedade palestina, porém, não é simples e tem base em lealdades históricas, econômicas e tribais que unem e opõem diferentes facções. As duas áreas sempre tiveram características distintas, cultural e geograficamente - a Cisjordânia sustentando uma sociedade urbana e agrícola sem saída para o mar, enquanto a Faixa de Gaza é litorânea. Essas diferenças aumentaram após a criação de Israel, em 1948, quando a Faixa de Gaza foi posta sob a administração do Egito e a Cisjordânia foi anexada pela Jordânia.

O Egito tratou Gaza como um enclave palestino e incentivou um forte senso de identidade palestina. Muitos habitantes de Gaza que estudaram no Egito nessa época foram influenciados pela Irmandade Muçulmana, cuja meta é estabelecer teocracias islâmicas por todo o mundo árabe.

A Jordânia, por outro lado, reprimiu o nacionalismo palestino em favor da identidade jordaniana. Além disso, os palestinos da Cisjordânia foram mais influenciados por sociedades seculares da Jordânia, Síria e Líbano, onde muitos foram estudar.

REALIDADES DIFERENTES

Quando os dois territórios se juntaram sob a ocupação israelense depois da Guerra dos Seis Dias entre árabes e israelenses, em 1967, eram lugares muito diferentes. Seus sistemas jurídico e educacional separados só foram consolidados após o estabelecimento da Autoridade Palestina, na década de 90.

Gaza, que economicamente sofreu mais nos últimos anos, tornou-se cada vez mais conservadora e religiosa, em grande parte por causa da crescente influência do Hamas. Muitas mulheres de Gaza usam o traje islâmico e são proibidas pelos maridos ou pais de trabalhar fora de casa. Na Cisjordânia, a maioria das mulheres usa roupas ocidentais, estuda e trabalha. A anêmica economia de Gaza concentra-se principalmente nos pequenos negócios e empregos proporcionados pela AP. A Cisjordânia, por sua vez, tem uma vida econômica mais rica que inclui indústria, agricultura e um setor de serviços. Suas cidades têm mais cinemas, museus, bons restaurantes e clubes noturnos.

Embora o Hamas agora esteja no controle de Gaza e o Fatah da Cisjordânia, nenhum dos dois conquistou o apoio político necessário para mater o poder em longo prazo. Por enquanto, o Hamas parece estar vencendo, mas suas últimas conquistas são primordialmente militares e não políticas. O grupo religioso é popular entre os pobres urbanos e os jovens tanto na Cisjordânia como em Gaza, mas o Fatah ainda é a facção mais forte na Cisjordânia - onde o grupo construiu um extenso sistema de clientelismo.

Muitos palestinos estão aborrecidos com ambas as facções pela incapacidade de trabalhar pela criação de um Estado palestino e propiciar um cenário econômico mais estável. Os palestinos reconhecem que só o Fatah detém a linha vital do apoio financeiro ocidental. Portanto, se o domínio militar der ao Hamas poder de barganha, o imperativo econômico de um corpo político palestino unificado implica, no final, em algum acerto com o Fatah.

FATAH

Nome: Acrônimo invertido de Harakat Al-Tahrir Al-Filistiniya (Movimento de Libertação da Palestina), Fatah significa ¿conquista¿

Origem: Fundado por Yasser Arafat nos anos 50 para promover a luta armada contra o controle da Palestina por Israel

Braço armado: Brigada dos Mártires de Al-Aqsa. Outros grupos armados também se ligam ao Fatah, como o Tanzim, a Força 17 (atual guarda presidencial da AP) e o Setembro Negro - responsável pelo seqüestro e assassinato de 11 israelenses na Olimpíada de Munique, de 72. As forças da AP (controladas pelo Fatah) ou ligadas ao grupo têm 65 mil membros

Situação atual: Após os acordos de Oslo, reconheceu o direito de existência de Israel. Exerce a presidência da AP desde sua criação, em 1994. Em janeiro de 2006, perdeu as eleições legislativas para o Hamas. Em meio à atual crise, o presidente Mahmud Abbas, do Fatah, decretou estado de emergência e nomeou premiê Salam Fayyad, um independente

HAMAS

Nome: Acrônimo de Harakat Al-Muqawama Al-Islamiya (Movimento de Resistência Islâmica), a palavra ¿Hamas¿ significa ¿zelo¿

Origem: Formado em 1987 de um ramo palestino da Irmandade Muçulmana do Egito para prestar serviços sociais aos palestinos e empreender a luta armada contra a ocupação israelense. A série de atentados suicidas contra civis israelenses fez com que fosse qualificado como uma organização terrorista por EUA, Israel e UE

Braço armado: Brigadas Ezzedine al-Qassam. O Hamas tem também um contingente de elite chamado Força Executiva. Os dois têm, ao todo, 20 mil membros

Situação atual: Rejeita reconhecer a existência de Israel, mas suavizou sua posição e falou sobre um cessar-fogo de longo prazo com os israelenses, se eles saírem das áreas ocupadas em 1967. Após combates com as forças de segurança ligadas ao Fatah, tomou o controle de Gaza. O deposto premiê Ismail Haniyeh, do Hamas, diz que seu afastamento é ilegal.