Título: A banalização da vida
Autor: Kujawski, Gilberto de Mello
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Em paralelo ao famoso conceito de ¿banalização do mal¿, cunhado por Hannah Arendt e denunciado como traço marcante da nossa época, em face do espetáculo de desagregação moral avassalando os Poderes em nossa terra, sem que a opinião pública responda à altura, poderíamos falar na ¿banalização da corrupção¿. A banalização produz a anestesia para o mal e a corrupção, continuando todos nossa vidinha como se aquelas aberrações não nos atingissem em cheio. O uso e o abuso da propina em troca de favorecimentos ilícitos ficou tão corrente que se propagou a todas as classes. São poucos os que protestam e ficam indignados com a onda de despudor que domina o País e assalta seus mais altos escalões. ¿Ora, se todos fazem, por que não eu?¿ Como indaga Salomão Schvartzman em seu programa diário na Cultura FM, será que o brasileiro perdeu a capacidade de se indignar?

Salomão está certíssimo. Estamos perdendo a faculdade da indignação, a cada dia mais acarneirados com as balas perdidas e a roubalheira endêmica protagonizada pelos que deveriam ser os primeiros a dar o exemplo de honestidade, nossos homens públicos. O que estará acontecendo em nosso país? O que ocorre hoje, não somente em nosso país, mas no mundo inteiro, é algo bem pior do que a banalização do mal e da corrupção. É a banalização da vida. Esta última está por trás daquelas duas outras banalizações.

A verdade é que domina em toda parte um viés alarmante de prosaísmo, invadindo todos os setores, a sociedade, a política, a universidade, a produção artística, a linguagem, o esporte, o lazer, a sexualidade, o nível moral e intelectual. Trata-se de fenômeno mundial, consolemo-nos, pois. O mundo contemporâneo flutua num mar de vulgaridade. Os principais meios de diversão de massa, o rádio e a televisão, ao alcance de todas as idades e de todas as classes, competem no campeonato da degradação humana. Atingem o nível de eficácia própria daquelas ¿técnicas de aviltamento¿ de que falava o grande filósofo francês Gabriel Marcel.

Os valores exaltados pela cultura, pelo civismo, pelo zelo profissional, pela responsabilidade pública são ignorados, escarnecidos e desprezados. Tudo se faz em nome de um cínico ¿pragmatismo¿, o qual nada tem que ver com a nobre concepção filosófica de William James, agora deformada na grossa ambição do ganho e do poder em proveito próprio. Adeus, lirismo, abaixo o entusiasmo pelos valores superiores, fora a paixão que eleva a alma. Todas as portas são violentadas pela grosseria e pela estupidez, pela ignorância e pelo imediatismo. O prosaísmo é como a erosão: arrasa e esteriliza o solo e nivela todas as altitudes.

Fala-se muito agora em ética, ¿ética e moral¿, como pedantemente se diz. Ora, o discurso ético não pode consistir numa série de preceitos gelados e abstratos do tipo ¿farás isso¿, ¿não farás aquilo¿, um catálogo de deveres friamente calculado e imposto a todas as vontades. Não, o discurso ético, para funcionar e ser incorporado pelas pessoas, tem de vir ungido pela paixão e pelo entusiasmo, mobilizando corações e mentes para a frente e para o alto. A ética sem o apelo do entusiasmo é falsa e farisaica. A moral que nos deixa frios e impassíveis será boa para os hipócritas, os temperamentos pedantes e formalistas, não para os homens e mulheres de carne e osso. O próprio Kant, com sua rígida e rigorista doutrina moral, confessa que duas coisas lhe enchiam o coração da maior admiração e respeito: ¿O céu estrelado por cima de mim e a lei moral em mim.¿ Animado pela sóbria sublimidade de sua construção ética, o filósofo prussiano concedeu-se um momento de lirismo.

O código descarnado da moral não nos basta, se não nos seduz e nos arrebata de corpo e alma. O ideal moral - disse certo filósofo - não pode contentar-se em ser corretíssimo: ¿É preciso que consiga excitar nossa impetuosidade.¿ Num mundo dominado pelo prosaísmo, pela banalização dos valores, pela mediocridade do espírito, convenhamos que este apelo à exaltação da virtude não vinga e não se propaga. Costumo distinguir entre a moral, no feminino, isto é, a honestidade e os bons costumes, e o moral, no masculino, ou seja, o espírito de luta na superação das dificuldades (como quando se diz ¿o moral da tropa¿). O moral tem primazia sobre a moral. Quando o moral vai alto, o ser humano está ¿em forma¿ e dificilmente resvala para a imoralidade. Quando o moral decai e a pessoa perde a fibra, abandona-se à inércia e se deixa levar pela disposição da menor resistência.

O político brasileiro faz muito que perdeu o moral, o sentido de luta, o espírito de missão cívica e patriótica. O Partido dos Trabalhadores assaltou o poder como uma nuvem de gafanhotos cai sobre uma plantação, e fazer política virou sinônimo de ganhar a próxima eleição, nada mais. Esta disposição extravasou do PT e contaminou a generalidade dos políticos, que se sentem hoje seres inúteis, sem tarefas a cumprir, encerrados nas cadeias do corporativismo e disponíveis a qualquer gesto de cooptação que venha do governo. Este é o político preparado para as tentações fáceis da venalidade e que sucumbe ao primeiro assédio, um político invertebrado, sem ossatura nem anatomia, e rendido à mais pura fisiologia. O triunfo do prosaísmo e da vulgaridade embrutece as almas e entorpece a sensibilidade moral.

Falta vergonha na cara dos políticos e indignação na opinião pública porque falta nas almas a paixão intransigente de ser fiel à voz da própria consciência, esta paixão incondicional, este sopro de lirismo que ordena fazer a coisa certa ¿ainda que me matem¿, e que gera a grande indignação. Henri Bergson pedia para a ciência um ¿suplemento de alma¿. Nós rogamos a todos os santos um suplemento de lirismo, e um sopro de entusiasmo pelos valores que dão sentido à vida.