Título: Cinqüenta dias que abalaram a Universidade de São Paulo
Autor: Martins, Luiz Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2007, Vida&, p. A26

Foram as cenas iniciais da queda do Antigo Regime dos estamentos na USP? Forças sans-culottes tomaram não só o bastião simbólico do poder, mas a liderança política e, frente a um Terceiro Estado passivo e ambíguo politicamente - o movimento sindical dos docentes -, comandaram a cena na USP. Instalaram a isonomia política radical.

O movimento foi majoritariamente não docente, mas vários destes, mais de 50 (além dos 546 que assinaram em apoio ao movimento), viemos colaborar diretamente com a ocupação.

Dividimos com estudantes e funcionários saberes e experiências, mas principalmente aprendemos muito: democracia direta, estratégias de luta, comunicação e improvisação, igualdade, fraternidade, liberdade e coragem moral. Temos idades e viemos de experiências diferentes. Mas saímos coesos, revigorados e com sólidas amizades do processo intensamente recíproco de formação política, intelectual e moral que foi a ocupação.

Foi uma Comuna - e que não terminou, como a de 1871 numa Semana Sangrenta, nem policialesca, como queriam muitos. Vencemos as forças da Versalhes paulista: o governo Serra, a autocrática e oligárquica administração da USP - inclusive as muitas direções das unidades que pressionaram pela saída ex-machina -, e este jornal, o Estadão, que, noblesse oblige, convida, louve-se, este artigo.

Logramos manter toda a luta no âmbito político e demonstrar que se tratava de um conflito, dentre outros, entre dois mundos: o da regeneração da USP mediante a isonomia, e uma ordenação tão senil e injustificável quanto o salazarismo e o franquismo.

O que destacar dentre o muito de novo e em poucas linhas? Os estudantes deram lições a todos os movimentos de como montar um blog de luta, ágil, poroso às intervenções individuais, e diversificado. Os funcionários ensinaram organização, maturidade e fraternidade política. Os professores que participaram do ciclo diário de palestras ¿Cultura de Greve/Ocupação é Formação¿, pudemos ensaiar atos didáticos de reflexão interdisciplinar e discussões democraticamente ligadas às experiências comuns; opostos ao trabalho em disciplinas reificadas e estanques, na universidade atual, atomizada e surda tanto internamente quanto à sociedade e à experiência real da maioria.

Aprendemos todos sobre o processo de ocupação como modo ágil e atual de luta: combinação das barricadas do século 19, com a greve em setores nevrálgicos, como a que fazem os controladores de vôo - bravos marinheiros do Potenkim de hoje - e assim elaboramos processos alternativos às grandes greves nas mega-plantas industriais, cruciais em etapas anteriores do capitalismo.

Ironias à parte, a Cidade Universitária não é Paris e a sede da Reitoria é um reles puxadinho, próprio da arquitetura precária da cena brasileira. Há muito o que fazer para refundar a USP e que esta tome o rumo apontado, não pela oligarquia que a fundou, mas por seus primeiros e históricos estudantes: Antonio Candido, Florestan Fernandes, Paulo Emílio, Vilanova Artigas, nossos mestres e guias, militantes a vida toda do ensino público.

Cabe investigar e extinguir as fundações privadas, veras caixas 2 espalhadas pela USP, cujos cursos pagos transformam em caça-níqueis várias escolas, gangrenando o todo; estabelecer a isonomia política em lugar da lógica oligárquica dos estamentos; democratizar o ingresso na USP; priorizar o ensino noturno, para derrubar o apartheid social na universidade; e tornar a excelência intelectual bem público.