Título: Lula e a inflação mundial
Autor: Levy, Joaquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Já se percebeu que o presidente Lula provavelmente foi o demiurgo da baixa inflação no Brasil dos últimos anos. O ex-ministro Antonio Palocci conta como o presidente se opôs ao aumento da meta de inflação em 2005, e é notório que jamais faltou apoio ao Banco Central (BC). A expansão do comércio asiático, com a baixa no preço das manufaturas, apenas facilitou o trabalho.

Examinando a globalização, é curioso que bancos centrais de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tenham trivializado o conceito marxista do 'exército de mão-de-obra de reserva', ao explicarem em suas minutas como a taxa 'natural' ou de 'equilíbrio' do desemprego havia caído pela integração do trabalhador asiático ao mercado mundial, o que teria permitido a persistente diminuição do desemprego sem despertar a inflação. Só que, mais uma vez, a profecia marxista encontra seus limites.

Os trabalhadores asiáticos não iriam continuar produzindo sem a expectativa de aumento de padrão de vida, o que põe tremenda pressão sobre os recursos do planeta. Como se sabe, enquanto a proporção da população brasileira vivendo com menos de US$ 2 diários em 2001 era de 20%, a proporção na China era o dobro e na Índia, quatro vezes maior (80%). A cifra brasileira deve ter caído com a apreciação do real e o Bolsa-Família. Mas o crescimento acelerado do PIB na Ásia tem um efeito muito mais forte, já que afeta centenas de milhões de trabalhadores. Essa pressão pode criar um impulso inflacionário, com riscos para a economia mundial.

A longa crise da América Latina, da qual saímos apenas recentemente, está ligada ao pique inflacionário de commodities criado pelo segundo choque do petróleo e à correspondente resposta da política monetária americana nos anos 1980. A História raramente se repete, mas a alta dos juros de longo prazo nos EUA pode ser um alerta de que mais alimentos e matérias-primas são essenciais para as engrenagens da economia mundial continuarem rodando suavemente, pelo menos enquanto não houver uma revolução no modelo de consumo da humanidade que permita subida do padrão de vida sem aumento na demanda por insumos. Essa observação pode lembrar análises do tipo Rosa Luxemburgo, ainda que aplicadas aos herdeiros de Mao, e não aos impérios europeus. Mas isso não deve matar a vontade de estudar a melhor resposta do Brasil a esse cenário. Até porque a posição do País ao longo do século 21 vai depender dessa resposta.

O grande desafio do Brasil é aumentar rapidamente a eficiência da sua economia para poder competir, o que é uma questão essencialmente de oferta, e não tanto de restrição de demanda, como a criada pela política monetária. Nesse contexto, o investimento em infra-estrutura e logística é prioritário e a integridade do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estratégica.

Um aspecto importante do PAC é reconhecer os desafios gerenciais na área federal e as vantagens potenciais da descentralização da execução de projetos com recursos federais (que vão além da obtenção de apoio político). Como diz o presidente Lula, muitas vezes o que falta não é dinheiro no orçamento, mas projetos e capacidade de implementação, inclusive para vencer as contestações externas. Essa avaliação, aliás, está alinhada com a experiência do Projeto Piloto de Investimento (PPI), lançado pelo Ministério da Fazenda em 2004. Os recursos financeiros do PPI sempre estiveram disponíveis, no entanto a execução de muitos investimentos foi lenta por dificuldades de implementação ou falta de projeto.

Mas o investimento público, mesmo que bem monitorado, não é suficiente para garantir todo o aumento da oferta desejável agora. O interessante é que o PAC também inclui um componente - ainda que talvez tímido - de melhora regulatória e reformas microeconômicas. A ênfase nesse componente é crucial, porque ambivalência nessa área - quer se ligue à exploração de petróleo offshore, à construção de estradas e hidrelétricas ou ao funcionamento de aeroportos - pode ter grande ônus para o País, aumentando os custos para as empresas, erodindo o valor do salário e a capacidade de crescer.

Dadas as demandas sociais, a opção por facilitar a participação do setor privado num marco de concorrência merece ser considerada como resposta ótima ao desafio do investimento num ambiente da grande liquidez internacional, especialmente agora que o País se aproxima do grau de investimento. Juntamente com iniciativas para acabar com a guerra fiscal e a indispensável sinalização de estabilidade monetária, ela favoreceria decisões eficientes, e não oportunistas. O Estado do Rio está trabalhando nesse sentindo, participando da reforma tributária, formando uma carteira de projetos seletiva, simplificando o pagamento de impostos e fazendo um grande esforço de melhorar a gestão pública.

Podemos aproveitar o momento atual para crescer, protegermo-nos de choques de preços e nos posicionarmos no mundo. Uma política de vigorosa ampliação da oferta de produtos com demanda global e foco na eficiência - para diminuir a fricção na economia - é a chave para esse resultado. Com isso diminui o risco de inflação e se fortalece a base industrial e de serviços sofisticados que já temos, ao se evitar a valorização indevida do câmbio real.

Em suma, raramente pensamos que podemos influenciar a economia mundial. Mas, neste momento, em que se preparam os planos plurianuais de governo nas três esferas da Federação e se decidem variáveis macroeconômicas para o segundo mandato Lula, ter ambição no que toca à estabilidade monetária e aos investimentos em infra-estrutura parece ser a melhor maneira de colher os benefícios dos sacrifícios feitos nos últimos anos e dar resposta aos desafios atuais. É um trabalho que, juntamente com o esforço extra para fortalecer as agências reguladoras, dar rumo à Previdência Social e levantar nossos padrões educacionais, vale a pena ser concluído.