Título: 'Só um milagre pode salvar Doha'
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2007, Economia, p. B8

A União Européia (UE) está disposta a negociar tarifas preferenciais para o etanol com o Brasil em um eventual acordo entre Bruxelas e Mercosul. Mas condiciona isso a uma definição sobre o futuro da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em entrevista ao Estado, a comissária de Agricultura da UE, Mariann Fischer Boel, afirma que o colapso da conferência de Potsdam, na semana passada, entre Índia, Brasil, Estados Unidos e Europa, foi causado pelo comportamento de brasileiros e indianos. Para ela, é preciso um ¿milagre¿ para que as negociações sejam concluídas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que a conferência de Potsdam fracassou? A flexibilidade européia na agricultura não teria sido insuficiente?

Mostramos flexibilidade por meses e estávamos preparados para modificar mais uma vez nossa proposta diante da possibilidade de acordo. Mas é importante que um acordo seja balanceado, inclusive em outras áreas. Há um ano, o processo entrou em colapso diante da recusa americana em cortar subsídios para a agricultura. Desta vez, vimos sinais de flexibilidade da parte dos EUA. Infelizmente, o corte de tarifas para produtos industriais era insuficiente, considerando o que havíamos oferecido em agricultura.

O que o Brasil ganharia com a sua oferta agrícola?

Um considerável novo acesso ao mercado europeu para uma dúzia de produtos. O Brasil seria mais competitivo com a queda nas tarifas de importação que oferecemos. Mesmo para produtos que queremos declarar sensíveis, teríamos uma importante abertura, com redução de tarifas e estabelecimento de cotas. O fim dos subsídios à exportação e menores subsídios também criariam aberturas interessantes em outros mercados e ajudariam a aumentar os preços das commodities agrícolas.

O Brasil acusou o bloco europeu e os americanos de terem chegado a um acordo de cotas antes de irem a Potsdam e, então, de terem forçado um acordo com os países emergentes. Isso de fato ocorreu?

Isso não é verdade. A Europa foi à reunião querendo negociar com o G-4. A idéia de divisão entre ricos e pobres é injusta e incorreta. A UE foi a Potsdam com a determinação de pressionar os EUA em subsídios. Pela primeira vez parecia que estava funcionando, até que a negociação foi interrompida abruptamente na quinta-feira.

Quem perde com o fracasso da rodada?

Todos nós. Mas especialmente os países em desenvolvimento. O Brasil vai perder novos acessos a mercados para seus produtores competitivos. Alguns acreditam que essas oportunidades podem ser recuperadas em acordos bilaterais. Mas a Europa nunca será capaz de oferecer bilateralmente o que estava preparada para oferecer nas negociações multilaterais. Um fracasso ainda significa perder o poder de influenciar a direção em que irão os subsídios dos EUA.

Por que a Europa não poderia oferecer bilateralmente o que estava disposta a fazer na OMC?

As negociações com o Mercosul são apenas mais uma na lista de conversas bilaterais que esperamos ter nos próximos meses. A OMC continua sendo a prioridade. No contexto multilateral, estamos preparados para fazer concessões em todos os setores. Temos o que chamamos de bolso único. Ou seja, não vamos fazer concessões duas vezes. Temos de ter em mente que, em caso de fracasso, o processo negociador da rodada deve ser colocado no freezer por algum tempo. Mas algum dia ele voltará e não podemos fazer concessões num acordo bilateral que, em alguns anos, tenhamos de fazer no âmbito multilateral.

Isso quer dizer que as negociações entre Mercosul e UE podem ficar congeladas ou teremos um acordo até o fim do ano ?

Ainda é cedo para dizer. Nossa prioridade continua sendo Doha. Claro que vamos estudar a possibilidade de negociar com vários países, incluindo o Mercosul. Mas isso não ocorrerá da noite para o dia.

Qual a possibilidade de que haja entendimento no comércio de etanol entre Brasil e Europa?

Sabemos que teremos de importar um certo volume de etanol para que possamos atingir nossas metas de consumo. Acredito, portanto, que estaríamos preparados para incluir o etanol em um acordo amplo entre UE e Mercosul.

Qual será o impacto do fracasso de Doha para o mercado agrícola?

Viveremos em um mundo mais incerto, sem controles. Hoje, os mercados de commodities estão bem. Mas isso não vai durar para sempre. Um acordo significaria tarifas e subsídios menores, levando a mais comércio, altos preços e competição. Uma situação em que o Brasil só teria a ganhar.

Em sua opinião, há possibilidade de concluir a rodada neste ano?

Espero que sim. O colapso de Potsdam não ajuda e precisaremos de um milagre para termos sucesso. Espero que nossas parceiros reflitam sobre os prejuízos de um fracasso antes que seja tarde demais.

Quem é:

Mariann Fischer Boel

De nacionalidade dinamarquesa, formou-se em economia na Bélgica em 1964

Foi ministra dinamarquesa da pasta de Alimentos, Agricultora e Pesca de novembro de 2001 a agosto de 2004

É comissária européia para Agricultura e Desenvolvimento Rural desde novembro de 2004