Título: Uma outra USP é possível
Autor: Weis, Luiz
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/06/2007, Espaço Aberto, p. A2

Nem tudo foi ilegalidade, de um lado, e complacência, de outro, nos 50 dias de invasão da Reitoria da Universidade de São Paulo, desocupada na última sexta-feira. Que o digam os Da Silva - Jameson, Larissa e Marcelo. Sem serem aparentados, têm em comum, muito além do mesmo sobrenome de uma infinidade de brasileiros, uma condição inaceitavelmente rara.

São os únicos, entre os 60 primeiranistas do curso de Relações Internacionais da USP, que fizeram o ciclo médio inteiro em escola pública. No vestibular deste ano, por sinal, a nota de corte para ingresso ali foi a terceira mais alta (depois de Medicina e Engenharia Aeronáutica) dos 106 cursos oferecidos pela instituição.

Neles entraram em primeira chamada 2.678 candidatos da rede oficial, 304 a mais do que no ano anterior; ainda assim, só 26,1% do total. Em 2006, o número de equivalentes aos Da Silva era proporcionalmente menor: 23,7%. (No vestibular da USP, o mais concorrido do País, 170 mil estudantes disputam 11.500 vagas. Passam seis de cada cem inscritos.)

O discreto aumento do contingente de aprovados vindos da rede pública reflete a estréia do Inclusp - Sistema de Pontuação Acrescida, em burocratês -, o programa de ação afirmativa que dá a candidatos como Jameson, Larissa e Marcelo um bônus de 3% nas notas obtidas nas duas fases do vestibular. Seria preciso um levantamento caso a caso para saber quantos daqueles 2.678 precisaram dos 3% para superar a barreira da nota de corte.

Mas, sendo o que é o ensino público brasileiro, o bônus há de ter feito a diferença decisiva na grande maioria dos casos. Não que o ensino pago seja uma Brastemp, mas o outro é ainda pior. Além disso, embora pífio nos dois casos, o capital cultural dos alunos das particulares deve ajudá-los a completar a travessia.

Sem, ou mais provavelmente com os 3%, o fato é que, enquanto a ilegalidade prevalecia na instituição, os novos universitários Jameson, Larissa e Marcelo tinham um compromisso a cumprir fora da sala de aula - a deles, aliás, passou ao largo das greves de docentes e discentes, nem nela respingaram os vexames dos posseiros da Reitoria. Na segunda-feira, 11, quando acabou a parede de 19 dias dos professores, e na terça, quando a invasão estava para completar seis semanas, já com 'indicativo' de encerramento, a trinca voltou às origens.

Eles tinham aceitado o convite, feito aos calouros oriundos da escola pública, para serem, por um dia, 'embaixadores da USP' junto às unidades onde estudaram - Escola Técnica Estadual Rubens de Faria e Souza, em Sorocaba, no caso de Jameson; Escola Estadual D. José Gaspar, em Ribeirão Pires, no de Larissa; e Dr. Tomás Alves, em Campinas, no de Marcelo. Munidos de material de divulgação e de uma ajuda de custo de R$ 100 para a viagem, lá se foram divulgar o Inclusp e descrever as suas experiências.

Os trechos mais interessantes dos relatórios que apresentaram em seguida ocuparão o resto deste espaço. Porque, além de evidenciar a maturidade de seus jovens autores, permitem perceber que, apesar dos 50 dias que abalaram o mundo uspiano, apesar de professores capazes de dizer que os protestos contra a tomada da Reitoria foram 'manifestações de extrema-direita, que não tivemos nem na ditadura' e apesar da ativa minoria de alunos prontos a aplaudir tamanha enormidade - apesar da treva, em resumo -, uma outra USP é possível.

De Jameson Vinícius Martins da Silva: 'Durante a visita, muitos alunos demonstraram desconhecer tais benefícios (isenção da taxa do vestibular para alunos com renda de até R$ 456, o bônus de 3% e auxílios como forma de bolsas, moradia, alimentação, transporte) e até certo descrédito em sua capacidade para superar a 'quase intransponível barreira do vestibular, principalmente a Fuvest'.

Busquei incentivar a entrada de estudantes numa universidade de excelência, à qual hoje, infelizmente, pouquíssimos têm acesso. De certa forma, a iniciativa trata de democratizar um bem que, com recursos públicos, não atinge a grande maioria dos que desses recursos mais dependem, como, aliás, ocorre com grande parte dos serviços prestados pelo Estado em nosso país.'

De Larissa Bressan da Silva: 'A sensação de participar deste programa foi agradável, já que foi possível mostrar que a realidade de estudar na Universidade de São Paulo - sendo aluno de escola pública - é tangível. No entanto, é de certa forma desanimador, considerando-se que a situação financeira destes estudantes não é, na maioria dos casos, comparável à de alunos de escolas particulares.

Dessa forma, a possibilidade que eles têm de fazer um cursinho pré-vestibular (porque o ensino público é, sem dúvida, superficial), já que muitos precisam trabalhar desde cedo. A universidade não está preparada para receber alunos com a base intelectual fornecida pelo ensino médio público. Daí os paliativos para aumentar a porcentagem destes estudantes na universidade. O ensino deveria ser melhorado para que não precisassem ser adotados.'

De Marcelo Marques da Silva: 'Meus amigos do ensino médio optaram, ou foram compelidos a estudar em universidades particulares ou, mesmo, a desistir do sonho de fazer um curso superior, para trabalhar. Portanto, foi um fato inédito para a escola a minha admissão na USP.

Tendo em vista a deterioração do ensino público, a queda na qualificação dos professores e o despreparo dos alunos para enfrentarem a concorrência nos vestibulares, para a grande maioria dos estudantes de escolas públicas ingressar em uma universidade como a USP é, ainda, um sonho inatingível.

Senti-me feliz por mostrar-lhes que também são capazes disso, apesar de todas as dificuldades. Por fim, esta experiência me acrescentou uma maior preocupação com o futuro das novas gerações e mostrou-me que todos nós devemos compartilhar a responsabilidade de construir um País melhor, mais justo e igualitário.'