Título: Voto só em lista, um desastre
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/06/2007, Espaço Aberto, p. A2
O início de votação da reforma política na Câmara dos Deputados estava marcado para ontem, a começar do seu item mais detestável, a lista fechada e pré-ordenada de candidatos a deputados e vereadores.
Escrevo sem saber o resultado. Na melhor hipótese, a idéia foi derrotada, o que valeria uma comemoração. Noutra, a discussão continuou, sem chegar à votação. Se aprovada, e sobreviver a outras votações, inclusive no Senado, será um desastre para a plantinha da nossa democracia, que terá podado um de seus galhos mais importantes, no qual poderia florescer um sistema eleitoral efetivamente aprimorado.
Há tempos o Congresso cozinhava a reforma em fogo brando, mas com essa e outras votações essa sopa, que inclui outros ingredientes, como o financiamento público de campanha, agora passa rapidamente à fervura. E, lamentavelmente, sem no processo ocupar na imprensa o merecido destaque, com os jornais relegando o assunto a páginas internas de seus cadernos que cobrem o País e sua política.
Com isso chegou à votação um dos aspectos mais importantes de uma reforma mal discutida, o qual marca ou não uma efetiva democracia, por meio de seu sistema eleitoral. Trata-se de definir se e como 'todo poder emana do povo', como diz a Constituição.
Como em outros episódios da nossa precária República, inclusive a sua própria instituição, o povo, desinformado e passivo politicamente, assistirá a tudo bestificado. Assim, corre o risco, por vezes já materializado, de ser tangido por caminhos ainda piores que aqueles aos quais já, até aqui, foi levado pelos que decidem em nome do povo, mas sempre a uma enorme distância dele.
Essa distância é a questão fundamental que estará em jogo na votação. Já temos um péssimo sistema, o de eleição proporcional de deputados e vereadores, em que os eleitores ficam muito distantes dos candidatos a seus representantes. Com muitas centenas de candidatos, não têm condições de conhecê-los com a profundidade necessária para uma boa escolha.
Nessas condições, o eleitor escolhe mal um candidato. Além disso, poderá até eleger outro, até mesmo um em que jamais votaria, pois seu voto é contado para o partido e a coligação do candidato em quem votou. Se na contagem de votos o detestado ficar à frente do preferido, e este último não conseguir o mínimo necessário para a eleição, este será o resultado: votou no que mal conhecia e elegeu o que não viu, ou mesmo o que não queria.
Em seguida, os eleitos têm por quatro anos uma procuração para fazer o que bem ou mal entenderem com o mandato, sem obrigação de prestar contas ao eleitor, em particular ao sucumbirem às tentações dos tubarões, pintados e lambaris que nas águas turvas do poder buscam vorazmente as decisões políticas de sua conveniência. Nesse quadro, o povo, a democracia e a República se tornam meras palavras em discursos tão inflamados em sua retórica como o atual sistema eleitoral em seus males agudos.
E há essa ameaça de coisa pior. Na votação em lista fechada, em lugar de escolher um único candidato a deputado (federal e estadual) e a vereador, o eleitor votaria numa lista, com cada partido definindo a sua, com ordenação prévia. Assim, se na votação o partido for contemplado com dez cadeiras, serão eleitos os dez primeiros nomes da lista.
Com isso as distorções do sistema atual se agravariam, pois nas listas deverão predominar os caciques e os tubarões políticos, escolhidos num ambiente ainda mais fechado do que aquele que hoje leva aos candidatos e aos eleitos pelo voto proporcional, num processo também agravado pelas dificuldades de renovação.
Pode-se antecipar que as disputas pelas listas se inscreverão entre as mais sujas da nossa imunda política. Aos vencedores, que ficarão a uma distância ainda maior dos eleitores, as benesses e as mesmas irresponsabilidades daqueles que hoje têm mandato. Aos eleitores, parodiando Machado de Assis, o plantar das batatas, pois ficarão ainda mais bestificados ao se tornarem ainda mais secundários no processo eleitoral, e se verem diante de listas impostas por partidos cujo traço marcante nos últimos escândalos, do mensalão ao atual, em geral tem sido o de perdoar e até enaltecer membros flagrados em irregularidades, tudo indicando que vários teriam lugar assegurado nessas listas.
A Executiva do PT e o DEM fecharam questão pela lista. No PMDB a maioria de deputados se revelou a favor e, entre os maiores partidos, apenas o PSDB se mostra dividido, conforme avaliação divulgada ontem neste jornal. O grupo dos contrários envolve apenas pequenos partidos, como PDT, PR, PP, PTB e PSB.
Essa predominância dos que querem a lista não se prende a fundamentos da idéia, pois é discutida superficialmente. Distantes de princípios e dos eleitores, tudo indica que o objetivo predominante entre os deputados é o de se reelegerem, pois certamente também defenderão o exercício do mandato como um dos critérios predominantes para figurar nas listas. Isso também explica por que o voto distrital não desperta maior interesse entre os deputados, pois seria uma mudança noutra direção, aproximando os eleitores de seus eleitos, e pondo em risco boa parte dos mandatos dos que se elegeram pelo atual sistema.
Do lado da sociedade civil, até aqui predominou a omissão. No noticiário de ontem, só vi uma manifestação contrária, da Força Sindical. Mas, mesmo que ontem tenha acontecido o pior, haverá outras votações, e ainda é tempo de reagir contra esse disparate que os deputados favoráveis à lista querem impor à efetiva emanação do poder político do povo brasileiro.