Título: 'Abertura dos arquivos reforça democracia'
Autor: Augusto, Claudio e Assunção, Moacir
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/06/2007, Nacional, p. A14

Depois da polêmica levantada pela decisão no caso do capitão Carlos Lamarca, os membros da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça se preparam para novos embates. O pedido de anistia política de Cabo Anselmo, o principal responsável pela extinção de várias organizações de esquerda durante o regime militar, é um dos que devem trazer novas discussões, antecipa o presidente da comissão, professor Paulo Abrão Pires Júnior. Só que agora do outro lado, já que Anselmo - líder do motim dos marinheiros, considerado um dos motivos da queda do então presidente João Goulart, em 1964 - é tido como traidor pela esquerda, da mesma forma que Lamarca é visto como traidor pelos militares. Para Abrão, contudo, o importante é trazer a história à luz. 'A abertura dos arquivos da ditadura só reforçaria a valorização da democracia', defende. A seguir, trechos de sua entrevista:

A decisão da Comissão de Anistia no caso Lamarca gerou certa insatisfação dos militares, como era previsível. A comissão colabora para a estabilidade do País ou é um fator de instabilidade?

Acredito que é um instrumento de estabilidade política. Estamos levando a cabo um acerto democrático que foi realizado no período da transição. Naquele período, optamos por uma Lei de Anistia que simbolizasse uma transição gradual e pacífica e o que estamos fazendo é aplicar a reparação econômica para aqueles que tiveram sua dignidade física e psicológica lesada, a fim de que o Estado possa reconhecer seu erro no período de arbítrio.

Quais são os critérios para definir indenizações ou reparações?

A primeira coisa é saber se aquele requerente tem ou não a condição de perseguido político. Temos de reconhecer se há registro nos órgãos de repressão da época (SNI e outros) e no Arquivo Nacional dessa condição, se há registro de que a máquina pública brasileira perseguiu aquela pessoa e causou prejuízo material a ela. Após isso, analisamos objetivamente o prejuízo. Se, por exemplo, um servidor trabalhava, hipoteticamente, no Banco do Brasil e , considerado subversivo, foi desligado de seu trabalho e arbitrariamente mandado para outra agência ou não recebeu a progressão a que teria direito, a gente verifica qual foi o dano material que ele sofreu, fazendo uma avaliação. Por vezes, esses valores resultam em indenizações bastante altas, mas são situações bastante específicas e casos isolados.

No caso do Lamarca, pelo fato de ele ter abandonado o Exército, ter saído do quartel levando armamento e optado pela luta armada contra a ditadura, há caracterização de obstrução à carreira?

Foi isso que a Justiça avaliou, em decisões do Tribunal Regional Federal, confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Esse reconhecimento é que abriu caminho para que a gente pudesse avaliar o processo dele. A Justiça entendeu que não se poderia ter exigido do capitão Lamarca conduta diversa da que ele teve e que se afasta da idéia de deserção. Na prática, diz-se que aquele ato era o único admissível de uma pessoa que acreditava nas liberdades democráticas e gostaria que o Brasil continuasse num cenário de democracia. De certa maneira, nosso trabalho foi muito simplificado, nós simplesmente ratificamos uma decisão que a Justiça já tinha tomado.

Quantos casos a comissão já analisou?

Temos em torno de 58 mil requerimentos apresentados desde 2001, quando se instalou a comissão. Exatamente a metade já foi analisada e julgada. Desses que foram analisados, 55% foram aprovados e 45%, rejeitados. A comissão é bastante criteriosa para avaliar se a pessoa tem ou não direto à indenização.

Qual o próximo caso que o sr. tem pela frente?

Temos alguns que também vão criar alguma repercussão, como, por exemplo, o do Cabo Anselmo, que entrou com um pedido de anistia política. É um processo de numeração alta, em torno de 52 mil, e, a não ser que tenham alguns critérios que lhe permitam passar à frente de outros, não deve ser avaliado ainda este ano. Há, também, outros de personagens notórios da história brasileira, como alguns estudantes, dirigentes da União Nacional dos Estudantes (UNE), dos jornalistas Jaguar e Ziraldo, além da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Há uma crítica, principalmente de organizações de direitos humanos, indicando que o Brasil optou pela reparação econômica, mas ao mesmo tempo não abriu os arquivos da ditadura, como tem ocorrido, por exemplo, na Argentina.

Na comissão, a gente nem entra no mérito dessa questão, mesmo porque nossa tarefa é muito delimitada. A pessoa entra com o pedido e a gente faz a avaliação. Acho que essa é uma questão macro, que envolve uma possível mobilização da própria sociedade brasileira. Acredito que todas as pessoas que tenham clareza têm a noção da importância de que a história venha à luz e os fatos sejam contados como realmente ocorreram. Eu reitero que isso só pode ser algo bom para nós, para que tenhamos a noção de que é possível ir para a frente. A abertura dos arquivos da ditadura só reforçaria a valorização da democracia.

Quem é: Paulo Abrão Pires Jr.

Doutorando em Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, mestre na mesma área pela Universidade do Vale dos Sinos, e formado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia.

Professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da PUC-RS.

Integra a missão brasileira do Itamaraty para a implantação da Universidade de Cabo Verde, na África.