Título: Improbidade administrativa
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2007, Notas & Informações, p. A3

Ao julgar uma ação em que o então titular do Ministério da Ciência e Tecnologia do governo Fernando Henrique, Ronaldo Sardemberg, foi acusado de improbidade por ter viajado em férias para a ilha de Fernando de Noronha num avião oficial, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 6 votos contra 5, que autoridades, como ministros de Estado e presidente da República, não podem ser processadas pela Lei de Improbidade Administrativa, pois já estão submetidas à Lei do Crime de Responsabilidade. O julgamento se arrastou durante cinco anos e o resultado levou em conta o voto de ministros que já se aposentaram.

Esses dois textos legais foram editados em momentos distintos da história brasileira, num intervalo de mais de quatro décadas, e alguns de seus dispositivos são conflitantes, dando margem a demagogia e exploração política. Aprovada em 1950, no governo do marechal Dutra, a Lei do Crime de Responsabilidade prevê foro privilegiado para o presidente da República, ministros de Estado, membros do STF e o procurador-geral da República. Se o acusado for condenado, fica impedido de ocupar cargos públicos por até cinco anos.

Em vigor desde junho de 1992, a Lei de Improbidade Administrativa foi concebida na mesma época do impeachment do presidente Fernando Collor e do escândalo dos ¿anões¿ da Comissão de Orçamento do Congresso, como resposta à proliferação de denúncias de enriquecimento ilícito contra ocupantes de cargos públicos no Executivo e no Legislativo. Ela prevê perda dos direitos políticos por oito anos. A responsabilidade pelo julgamento é da primeira instância do Judiciário e nenhum agente público ou político no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração direta ou indireta tem direito a foro especial.

Como a Lei de Improbidade Administrativa prevê punições muito mais rigorosas do que a Lei do Crime de Responsabilidade, representantes do Ministério Público classificaram a decisão do STF como ¿retrocesso¿. Segundo eles, a concessão de foro privilegiado abre caminho para o arquivamento de 10 mil processos contra autoridades públicas por improbidade, enfraquecendo o combate à corrupção e estimulando a impunidade. O problema é que, desde a edição da Lei de Improbidade Administrativa, muitos membros do Ministério Público passaram a utilizá-la de modo acintosamente político, para favorecer determinados partidos.

O desvirtuamento desse texto legal ficou evidente durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando membros da Procuradoria-Geral da República pediram a abertura de dezenas de processos criminais contra autoridades do primeiro escalão do governo, acusando-as de enriquecimento ilícito, tráfico de influência e improbidade. A tática utilizada por esses procuradores, dos quais os mais conhecidos são Guilherme Schelb e Luiz Francisco de Souza, que recentemente foram punidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público por usarem suas prerrogativas para fazer política partidária, era ¿vazar¿ boatos de irregularidades a jornalistas de confiança e aproveitar as notícias publicadas na imprensa para fundamentar a proposição de ações criminais.

Embora fossem infundadas, denúncias feitas por simples procuradores de primeira instância obrigavam as autoridades da época a ter de se defender em todas as cidades onde houvesse uma vara da Justiça Federal. Além de levar ministros, diretores de autarquias e presidentes de estatais a ter de despender recursos com advogados e passagens aéreas para se defenderem nas comarcas mais longínquas, o desvirtuamento da Lei de Improbidade, por esses procuradores, gerou outro grave problema. Os juízes federais de primeira instância passaram a prolatar sentenças conflitantes, gerando uma insegurança jurídica que, muitas vezes, se irradiou da política para a economia, com graves prejuízos para o País.

Ao decidir que autoridades públicas têm direito a foro especial, não estando sujeitas à Lei de Improbidade, o STF tomou uma decisão sensata. Definiu de modo racional as competências das diferentes instâncias da Justiça e do Ministério Público, evitando o uso partidário das denúncias por improbidade, coibindo a judicialização da política e aumentando a segurança jurídica do País.