Título: Desventuras em série
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2007, Nacional, p. A8

Uma parte dos senadores integrantes do Conselho de Ética começa, finalmente, a se render à evidência de que o Senado não é um clube nem uma entidade recreativa com fins corporativos, muito menos um cenário disponível ao patrocínio impune de ações entre amigos.

É uma instituição submissa aos preceitos da República, delegada da missão de representar a Federação, devedora de satisfações ao conjunto da Nação.

Mas o presidente do Senado, Renan Calheiros, ainda não incorporou essa percepção. Continua usando das prerrogativas constitucionais e regimentais em benefício próprio: defendeu-se sentado na cadeira de presidente e ontem movimentou-se o tempo todo antes da reunião do Conselho de Ética para obter apoio dos pares.

Durante a sessão deu ordens à tropa de defensores a partir de seu gabinete, fez do líder do governo seu porta-voz e até conseguiu mudar a posição do relator, inflexível aos apelos para que desistisse de pôr seu parecer em votação. Epitácio Cafeteira não tinha entendido - mas por interferência de Renan Calheiros entendeu - a tática do adiamento ante a derrota iminente.

Risco que seria remoto se, na véspera, a TV Globo não tivesse exposto no espaço de maior repercussão noticiosa do País as incongruências da defesa do presidente da Casa. Só isso fez seus pares - ou parte deles - aceitarem dar às suspeitas o benefício da dúvida e inverterem a lógica da atuação, até então toda referida na relação pessoal com o presidente.

Antes da contestação aos documentos de comprovação de renda em rede nacional, o Senado caminhava com desembaraço para arquivar o caso sem que o presidente da Casa tivesse conseguido explicar se o dinheiro da pensão de alimentos da filha saiu de sua conta bancária, do bolso de um lobista da Mendes Júnior ou do caixa da empreiteira.

Esta é a questão original ainda não respondida. A ela, ao longo desse lamentável espetáculo, foram acrescidas outras três: a estupenda evolução patrimonial do senador, segundo ele obtida mediante negócios agropecuários no segundo Estado mais pobre do País, a suspeita de fraude de notas fiscais de transações de venda de gado e, ao que tudo indica, a mentira perante o Senado.

Tal plantel de complicações seria suficiente para dar a qualquer pessoa na posição do senador Renan Calheiros a indicação da conveniência de se afastar da presidência do Senado. Mais não fosse, para não contaminar o colegiado e a instituição com suas adversidades.

Mas o senador Renan Calheiros parece acreditar que ameniza a sangria insistindo em permanecer no posto para o qual, no momento, não dispõe do atributo essencial: a confiança inequívoca de que seja um cidadão acima de qualquer suspeita.

Um ato falho (ou teria sido intencional?) do senador Pedro Simon na sessão de ontem do conselho traduz bem a situação. ¿Eu ponho a mão no fogo pelo Renan¿, começou a dizer para, em seguida, recuar: ¿Mão no fogo não ponho, como não ponho por ninguém atualmente na política.¿

Aí é que está: não há convicção plena sobre a lisura do presidente da Casa dentro do Senado bem como há na sociedade desconfiança total a respeito das condutas dos políticos como um todo. Em boa medida por causa de atitudes como a que os senadores tomaram por ocasião da primeira defesa de Calheiros, apresentada da cadeira de presidente, formando uma fila de solidariedade em caráter liminar.

Foi uma precipitação corporativista. Aos poucos alguns deles foram se dando conta de que estavam indo ladeira abaixo de braços dados com Renan Calheiros.

O afrontoso cinismo com que defendiam o arquivamento do caso, alegando invasão de privacidade, deu lugar a alguma racionalidade, a despeito do objetivo ser o de salvar as aparências.

Primeiro, o Conselho de Ética rendeu-se à contingência de abrir um processo de investigação, mas o presidente já foi logo manifestando sua vontade de engavetar.

Nomeou-se um relator que firmou voto pela ausência de provas baseado só nas razões da defesa, sem procurar provas.

O ato tão desabrido parece ter servido para acordar consciências, mas não o suficiente para fazê-las assumir a necessidade de apuração dos fatos. Ainda dentro da lógica das aparências, abriu-se prazo de 48 horas com a intenção de, então, usar a maioria no conselho para aprovar o voto do relator.

O roteiro foi atropelado pela reportagem exibida no Jornal Nacional e vários personagens antes solidários começaram a perceber o tamanho da enrascada.

A correlação interna de forças mudou e o presidente do Senado, percebendo que perderia ontem se fosse feita a votação do relatório de Epitácio Cafeteira, propôs o encerramento da sessão, perícia nos documentos, coleta de depoimentos e retomada da votação daqui a quatro dias.

O problema é: com um fim de semana no meio, o impedimento profissional de o advogado de Mônica Veloso se manifestar publicamente e o veto tácito ao depoimento dela, não há como garantir um contraditório decente. Muito menos dar por encerrado o caso.