Título: A importação de carcaças
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/06/2007, Notas & Informações, p. A3
A decisão do comitê de arbitragem da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a proibição, pelo Brasil, da importação de pneus usados, deixa o governo brasileiro com uma batata quente nas mãos. Terá de fazer em 90 dias o que não se preocupou em fazer durante 15 anos. Desde 1991, está em vigor uma lei que proíbe a importação de produtos usados, mas essa legislação tem brechas, de que se valem as indústrias de recauchutagem de pneus para obter liminares na Justiça. Assim, apesar da proibição, de 1990 a 2004 foram importados 34 milhões de pneus usados. Em 2005, foram 10,4 milhões e, no ano passado, 7,6 milhões. Às carcaças importadas, somem-se cerca de 50 milhões de pneus que são descartados anualmente. Como a indústria de reciclagem não produz mais que 4 milhões de unidades por ano, vê-se que a importação não é necessária. Na verdade, o Brasil estava se tornando um verdadeiro depósito de refugo para indústrias estrangeiras que têm de enfrentar restrições ambientais cada vez mais severas em seus países. Os estoques de carcaças existentes na Europa são estimados entre 2 bilhões e 2,5 bilhões de unidades.
A maior parte desses pneus, depois de reaproveitados e usados, acaba se amontoando em lixões e depósitos, criando problemas ambientais e de saúde pública, pois formam viveiros ideais para a proliferação de doenças, inclusive a dengue. Foi esse, aliás, o principal argumento usado pelo governo brasileiro para se defender no painel da OMC, convocado pela União Européia. Bruxelas argumentava que a proibição brasileira de importação de pneus recauchutados europeus era ¿discriminatória e injustificável¿ e constituía violação das normas internacionais de comércio.
A defesa feita pelo Itamaraty surtiu efeito. O comitê de arbitragem decidiu que os argumentos de contaminação ambiental e de disseminação de doenças se sobrepõem às queixas de natureza econômica e comercial, nesse caso. Mas a decisão foi salomônica. O Brasil pode proibir a importação de pneus reformados - os prontos para uso - da União Européia, mas desde que torne efetiva a proibição de importar pneus usados - aqueles que precisam de recuperação.
Além disso, o comitê reconheceu a existência de ¿discriminação justificada¿, no caso da importação pelo Brasil de pneus recauchutados dos países do Mercosul. Em 2000, o Uruguai - que no ano passado exportou 164 mil desses pneus para o Brasil - abriu um painel contra a proibição, nos órgãos de solução de controvérsias do Mercosul, e o Brasil perdeu a questão de forma irrecorrível. É com base nessa decisão do Mercosul que alguns juízes concedem as liminares que possibilitam a importação dos pneus reformados europeus.
O governo demorou cinco anos para se dar conta de que, se não fossem fechadas as brechas legais, o Brasil se tornaria um depósito de dejetos - não apenas de pneus, mas também de televisores, pilhas e baterias, produtos altamente poluentes que demoram décadas para se degradar. Só no ano passado a Advocacia-Geral da União entrou no STF com uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Se o Supremo confirmar a validade da lei de 1991 que proibiu a importação de produtos usados, cria-se uma jurisprudência que terá o efeito prático de dificultar a concessão de liminares pelos tribunais de instâncias inferiores, permitindo a importação de carcaças.
Diante da condição imposta pelo comitê de arbitragem da OMC - a proibição de importação de pneus reformados da União Européia só vale se for efetivamente proibida a importação de pneus usados, ou seja, de carcaças -, o governo brasileiro está, agora, agindo com uma pressa que nunca teve. Assim que soube da decisão, o Itamaraty enviou cópia traduzida para a ministra Carmen Lúcia, que relata a ação no Supremo. Também fez gestões no sentido de antecipar ao máximo o julgamento do caso, uma vez que a decisão da OMC deve ser implementada no prazo de 90 dias depois de publicada.
Como não sabem se o Supremo julgará o processo no prazo e muito menos qual será a sentença, autoridades do Executivo falam num Plano B: mudar a legislação, eliminando as brechas que permitem a concessão de liminares. Ninguém explica por que o governo, até hoje, não editou medida provisória resolvendo a questão.